"Em homenagem à professora Gizêlda Melo do Nascimento, que nos deixou no último ano."

Escrevivência
, como o próprio nome sugere, é um conceito, criado pela escritora Conceição Evaristo, que significa “a escrita que nasce da vivência de quem escreve”. No caso da autora, seu texto é profundamente marcado pela sua experiência de mulher negra na sociedade brasileira. Há quem diga que esse tipo de texto tem menos qualidade do que aqueles que se dizem “puramente ficcionais”, já que, segundo alguns, textos de caráter biográfico acabam presos a “verdade” e renunciam ao exercício da criação.  Bem, eu, sinceramente, não consigo acreditar nessa concepção, pois, entendo que não há ficção totalmente esvaziada de verdade, nem verdade livre de ficção. Tudo tem um pouco de tudo. E, é exatamente essa mistura que me encanta na Literatura.  Gosto de ler um texto e enxergar quem escreveu. É como se me comunicasse com aquele escritor, através dos seus personagens. Essa história de “distanciamento”, ou “Meu texto é meu texto, eu sou eu” para mim, não cola. Quero mesmo é conexão, voz, sentido, proximidade.

A primeira vez que ouvi esse termo, “escrevivência”, foi em 2008, quando cursava o segundo ano do curso de Letras, na UEL. Andava pelo CCH, meio perdida, refletindo se daria continuidade ou não no curso, quando vi uma senhora negra, de voz rouca, lendo um poema, em um dos auditórios do centro. Aquela cena chamou-me a atenção. Primeiro, porque ainda não tinha visto pessoas negras na posição de professores, naquela Universidade. Segundo, porque o texto que ela lia, ilustrava, exatamente, o que se passava em meu coração. E, de repente, tudo fez sentido e eu, finalmente, tinha encontrado o meu lugar. Eu era uma mulher negra.

É possível que você pense “Que mulher louca! Demorou 20 anos para descobrir que era negra? Não se olhava no espelho, não?” Não. Quase nunca. Raramente. E, quando me olhava, geralmente não gostava do que via. Aprendi, desde muito cedo, que meu cabelo era ruim, que a cor da minha pele era feia e que eu sempre teria que me esforçar mais que os outros, se quisesse chegar em algum lugar. Mas, naquela tarde, tudo mudou, quando fui tomada por aquele texto. Eu, que sempre me senti sozinha por ser única filha, única aluna negra na escola, única professora negra no trabalho, fui abraçada por aqueles versos e acolhida pelos demais que estavam no auditório, ouvindo o poema.

Sentei-me e comecei a ouvir a análise da professora. Alguém me entregou uma folha de papel sulfite, no qual o poema estava escrevivido, para que eu pudesse acompanhar a aula. A professora, querida professora Gizêlda, falava, olhando em meus olhos. Acredito que imaginava o que estava acontecendo comigo, pois também já havia passado por aquele processo de autodescoberta. Entendi que aqueles versos eram o elo que me ligava à poeta, à professora, à Conceição Evaristo, às minhas ancestrais, à uma princesa do reino de Benguela. Aquele texto me incomodou, me transformou, me humanizou. Desde aquele dia, nunca mais parei de ler! A literatura me movimenta e é só no movimento que a vida existe!

Nesses movimentos, guiada por essas escrevivências, cheguei a Belo Horizonte, em 2011, para fazer o mestrado.  A mineiridade deixou marcas profundas em mim. Aprendi não só o sotaque, mas essa capacidade mineira de ver beleza em meio as montanhas. Essa habilidade de descobrir ouro escondido na paz de uma mesa posta, na calma ritmada de uma conversa, nas lembranças do bordado das mulheres da família, expostos no rack da sala, no afeto colocado no sufixo “inho” do cafezinho, do pertinho, do pouquinho, no aprendizado conquistado devido às constantes subidas e descidas das ladeiras.  Em 2014, retornei a Londrina e iniciei o doutorado, na UEL. A literatura me trouxe de volta!

Como uma boa canceriana, sou extremamente sensível.  Mas, não uma sensibilidade frágil, como costumam nos julgar. É aquela sensibilidade de perceber que nada passa por nós, sem causar algo em nós. Talvez seja por isso, que gosto de textos que me atravessam e que me ajudam a atravessar. Textos que me tiram do lugar e me auxiliam no processo de encontrar o meu lugar! Textos que me ajudam a analisar esse mundão a minha volta e o lugar, onde me encontro! São esses textos que você encontrará aqui, nesta coluna! Espero que possamos, juntos, descobrir, cada vez mais, o poder das escrevivências! O poder de nos fazer continuar, prosseguir, caminhar!

Enquanto isso, apreciem “Coração tição”, de Ana Cruz. O poema que me ressignificou e me trouxe até aqui!


Coração Tição

Quero me lambuzar nos mares negros
para não me perder,
conseguir chegar no meu destino.

Não quero ser parda, mulata
Sou afro-brasileira-mineira.
Bisneta
de uma princesa de Benguela.

Não serei refém de valores
que não me pertencem.
Quero sentir sempre meu coração
como um tição.

Não vou deixar que o mito
do fogo entre as pernas iluda e desvie
homens e mulheres
daqui por diante.

( Ana Cruz, E... Feito de Luz, 1995)

 

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