Tem umas coisas que acometem nossos sentidos ainda na infância, e com o passar dos anos aquele fio de memória vai ganhando uma configuração maior; o que era cheiro, som, cor se transforma em matéria – esta, movida principalmente pela curiosidade que foi plantada um dia no arcabouço de nossas experiências sensíveis. Eu não me lembro em qual situação especifica escutei pela primeira vez uma trilha que me marcou, mas tenho uma pequena recordação, já mais velha, de ter a ouvido num espetáculo. Tenho o hábito de tomar nota do trecho ou gravar a melodia quando ouço algo que me chama a atenção. Recentemente, soube de um aplicativo online que detecta o artista e o título. Fiquei impressionada!

Mas voltando ao assunto, essa trilha, que em algum momento atravessou parte da minha existência, veio mais tarde junto dos filmes do Tarantino. Eu sei, eu sei, a turminha da vanguarda vai me excomungar por dizer que conheci Ennio Morricone por causa de Kill Bill. Mas o que eu posso fazer gente, se quando eu nasci, o Morriconi já tinha sido até indicado ao Oscar – mesmo só tendo recebido sua primeira estatueta nos anos 2000. Um tempo depois, “descobri” que a canção era, APENAS, a trilha sonora de um dos filmes de Western mais importantes da história. Dirigido por Sergio Leone, e estrelado por Clint Eastwood, ‘Três Homens em Conflito’ (1966) trazia a música tema que possivelmente eu escutei na televisão, mas que só reencontrei uns vinte anos depois: The Good, The Bad and The Ugly (dá um Google aí se você não lembra dela!).

No mês que o mestre das composições sonoras de filmes deixa este plano, honestamente, eu não podia pensar em outro tópico a não ser falar de um dos longas mais intensos no que diz respeito a relação entre diretor e compositor. Cinema Paradiso (1988), de Giuseppe Tornatore, grande cineasta e amigo próximo de Morriconi, é uma obra metalinguística da paixão pelos filmes e pela própria sedução do aparato cinematográfico. Passado mais de trinta anos de sua estreia no Festival de Cannes, a trajetória de Totó e sua genuína amizade com Alfredo, é luminosamente narrada por Tornatore no escurinho da sala de projeção – lugar que ainda hoje é cercado de símbolos e de um certo espectro fantasioso.

Se já naquela época Paradiso fez uma carreira estrondosa nos festivais, hoje, com a obsessão de listas e sugestões espalhadas pela internet, ele é relembrado como uma produção icônica quando o assunto cinema é ele mesmo. Claro, não é para menos, considerando que o longa rendeu ao diretor dezenas de prêmios, entre eles, o Oscar por Melhor filme internacional, o Grande Prêmio do Júri em Cannes, Prêmio César na França e o Globo de Ouro nos Estados Unidos. Quase como uma expressão de obituário aos cinemas tradicionais e da maior declaração de amor que a sétima arte já recebeu, Cinema Paradiso é, sem dúvida, um filme purista, porém bastante emocionante.

O plot do longa é basicamente a história de um menino sonhador que apaixonado pelo cinema deseja aprender as técnicas de exibição (ainda bastante primitivas na época) com um antigo projetista numa cidade interiorana da Itália. Totó (Salvatore Cascio) torna-se uma espécie de herdeiro dos ensinamentos de Alfredo (Philippe Noiret) e juntos vão defender seus ideais mais românticos e clichês – o que para época, era uma tendência; hoje, talvez, o filme apresente tons um bocado platônico, mas ainda sim de uma singeleza e sensibilidade inerentes ao cinema italiano. Após um acidente que deixa Alfredo cego, Totó se torna o projetista oficial do cinema, considerado a principal fonte de entretenimento daquele simples povoado.

Há sequencias deliciosas em que o trágico se mistura nas banalidades e provoca riso e emoção no espectador. Uma delas, em especial, é logo na primeira parte do filme em que o padre da cidade faz a vistoria das produções recebidas, para aprovar ou desaprovar algumas cenas antes do filme entrar em cartaz. É curioso, porque a narrativa se passa num contexto bastante rígido de regime pós-guerra e o padre, claro, censura as imagens mais, digamos, “quentes” (quentes, para a época, as cenas de beijo!): “– Como beijam! ”, ele exclama, e toca o sino quando julga que essas cenas precisam ser cortadas para manter os “bons costumes”. Totó, lógico, cria uma verdadeira fixação nos frames (na época ainda chamado de quadros) eliminados pelo padre, cujas películas físicas, Alfredo guarda consigo na sala de projeção.

É também de uma beleza delicada, os conselhos que Alfredo dá a Totó já mais moço, pois as frases mais sábias emitidas pelo velho amigo, na maioria das vezes remetem a falas de personagens famosos em filmes clássicos. Tornatore faz uma ode as gerações anteriores do cinema referenciando nomes como Jown Wayne, Greta Garbo, Charlie Charplin, Clark Gable, Buster Keaton, Jean Renoir, entre outros. As cenas de filmes antigos são intercaladas com as cenas de Cinema Paradiso, como se eles fizessem parte essencial da narrativa. E toda a vida e acontecimentos daquela cidade passa a ser uma espécie de obra decorrente desses episódios no cinema.

Além do padre, a trama também é permeada de outras figuras - bonachões e caricatos, como um dos espectadores do Paradiso que frequenta as sessões apenas para dormir, ou os meninos que esperam ansiosamente por uma cena que mostre as belas mulheres de Hollywood. Neste contexto meio absurdo, meio pacato, tem o louco, o apaixonado, um casal que se conhece no cinema, e a relação dos dois amigos vai ganhando um significado que transborda a tela; claro, acompanhado da trilha inesquecível de Morriconi. Totó vai embora para Roma, torna-se um grande cineasta e retorna à cidade trinta anos depois, quando fica sabendo da morte de Alfredo. De volta às origens, o reencontro do pequeno Totó, agora Salvatore Di Vita, com a cidade e seus personagens é a expressão imagética da memória mais forte de sua infância, o cinema.

Pra quem já viu esse filme, nem preciso dizer o quanto a última cena é arrebatadora e de ZERO “bons costumes” (hehehe)! E pra quem não viu, fica minha sugestão nada recente, embora absolutamente atemporal, como as boas histórias contadas no cinema – narrativas estas, que superam os anos, os fatos, as dificuldades da vida, das relações..., que nos fazem sonhar grande e que vez em quando lembram a falta que nos faz aqueles que tanto amamos.

O cinema, para mim, também é saudade. Saudade das coisas que acometem nossos sentidos ainda na infância.

 

(Sobe créditos finais).

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