“Não vou mais lavar os pratos” é o título de um dos poemas mais potentes da literatura brasileira. O texto de Cristiane Sobral narra o processo epifânico de uma mulher que, ao ter contato com a literatura, decide mudar radicalmente sua vida, abandonando empregos indesejados, relacionamentos abusivos e posturas que não correspondem com a sua verdade.

O poema foi publicado, pela primeira vez, na antologia Cadernos Negros 23 no ano 2000. Todavia, esse texto só chegou em minhas mãos em 2010, quando Cristiane lançou seu primeiro livro individual e eu tive o prazer de lê-lo. Recordo-me que o livro fez muito sucesso e o nome da poeta passou a circular com mais frequência nas rodas de leituras negras, nas pesquisas acadêmicas, nos eventos literários. Cristiane também era atriz e isso tornava os encontros com ela memoráveis, porque tínhamos a oportunidade de sermos tocados por sua performance. Éramos incomodados não só pelas suas palavras, mas pelo seu olhar, pela entonação de sua voz, pelo movimento de seu corpo e pelo seu “Pixaim elétrico”* que marcavam cada verso declamado.

Eu li o texto. Eu vi Cristiane declamando o poema. Contudo, na minha ingenuidade, entendi que o texto se referia, apenas, a ideia de ascensão social proporcionada pela educação.

“Não vou mais lavar os pratos.
Nem vou limpar a poeira dos móveis.
Sinto muito. Comecei a ler[...]”

 Lembro-me que eu acreditei firmemente nessa concepção. Eu realmente pensava que assim que tivesse um diploma, o racismo acabaria. Não só pelo poema, mas porque foi o que me ensinaram a vida toda. Minha mãe sempre dizia que era preciso estudar para não ter que lavar o chão alheio. Entretanto, eu comecei a lavar pratos dos outros em 2011, quando iniciei o mestrado.

Sofri muito.

Não conseguia conceber que mesmo sendo uma das primeiras mulheres da minha família a concluir o Ensino Superior, mesmo tendo sido preparada a vida toda para romper com o ciclo de subalternidade ao qual as minhas ancestrais tinham sido submetidas, precisaria limpar sujeiras alheias. Enviei milhares de currículos, mas, não obtive respostas. Precisava comer, pagar aluguel, comprar livros. As aulas do mestrado eram no período da tarde e não encontrei nenhum outro trabalho, naquela imensa capital mineira, que me permitisse conciliar emprego e pós-graduação, além de lavar pratos.

Assim, lavei pratos, alimentei as crianças, tirei poeiras dos móveis, levei lixo para a rua. Ouvi os desabafos da patroa, que se sentia culpada por trabalhar muito e não ter tempo para ficar com os filhos. Acalmei a menina quando chorava por causa da saudade que sentia dos pais, a ensinei a formar as primeiras palavras, a vestir-se sozinha e a respeitar as diferenças! Analisei os versos do patrão que se entendia poeta e, ao descobrir que eu estudava literatura, quis conhecer minha opinião a respeito das suas aventuras poéticas. E, fiz tudo isso da maneira que as mulheres da minha família me ensinaram: perfeitamente bem! Desse modo, compreendi que recitei, no meu modo de agir, “Não vou mais lavar os pratos” e, foi nesse momento, que entendi do que se tratava, realmente, a poética de Sobral.

“A estática.
Olho minhas mãos quando mudam a página
dos livros, mãos bem mais macias que antes
e sinto que posso começar a ser a todo instante.
Sinto.
Qualquer coisa.[...]”

Tais versos não são uma simples crítica ao trabalho doméstico, como imaginava. O que há em “Não vou mais lavar os pratos” é “Não vou mais ser o que você quer que eu seja, mas o que eu desejo ser”. Não tem a ver com o trabalho em si, mas, com empoderamento, consciência histórica e insubordinação.

É sobre o poder que a literatura tem de nos transformar e nos humanizar, nos ensinando a sentir... Sentir qualquer coisa!

Passei a sentir. Passei a enxergar. Passei a questionar. Passei a querer existir. E, depois disso, o feijão queimou. Não porque não sabia fazer, mas porque não gosto de feijão.

Não é sobre lavar pratos. Nem sobre limpar. Nem sobre cozinhar. É sobre lutar pelo direito de poder fazer escolhas: ser o que quiser ser, fazer o que quiser fazer, ocupar o lugar que quiser ocupar, sentir o que quiser sentir!

“Agora que comecei a ler quero entender.
O porquê, por quê? e o porquê.
Existem coisas. Eu li, e li, e li. Eu até sorri.
E deixei o feijão queimar...”

Minha querida avó materna, dona Aurea, lavou pratos, praticamente, até morrer. Criou os filhos dos patrões e trabalhou nos natais, nos dias das mães e nos aniversários. Por toda a sua vida, foi tirada do convívio dos seus para ocupar o "seu lugar" de serviçal na casa alheia.

Entretanto, um dia, depois de 30 anos vivendo em um relacionamento abusivo, “desalfabetizou”. Decretou a lei Aurea em uma época em que o divórcio era sinônimo de marginalização. Com a ajuda dos filhos, construiu sua casa e iniciou seu matriarcado, seu quilombo, onde estabeleceu as suas regras e as transmitiu aos seus familiares. Cresci vendo homens e mulheres lavando pratos. Cresci vendo meus tios respeitando minhas tias.

Minha avó não sabia ler. Minha vó também não gostava de feijão, mas escolheu cozinhar a tradicional feijoada de agosto para os filhos, filhas, noras, genros, netas e netos. Minha avó era divorciada, mas escolheu cuidar do meu avô que estava morrendo sem cuidados.

“Depois de tantos anos alfabetizada, aprendi a ler.”

É sobre isso.

É sobre libertar-se de relacionamentos abusivos. É sobre identificar violências e não se submeter a elas. É questionar relações inadequadas de trabalho. É sobre construir redes de afeto e apoio. É sobre cuidarmos uns dos outros. É sobre “desalfabetizar-se” de todas as mentiras que nos foram ensinadas sobre o que era reservado para nós, mulheres negras. É sobre abolir com frases como “você precisa conhecer o seu lugar!”. Meu lugar? Que lugar?

Meses depois, fui contemplada com a bolsa de mestrado e pude sair do emprego e dedicar-me a pesquisa. Depois, fui convocada em um concurso que havia prestado e adentrei a sala de aula. Com meus alunos, li “Não vou mais lavar os pratos”.

Assim, sigo buscando romper ideias e lugares fixados! Sigo nessa revolução, que consiste em conhecer e compreender o poder que a gente tem!

Deixo vocês com a poética de Cristiane Sobral! Incomodem-se!

Não vou mais lavar os pratos

Nem vou limpar a poeira dos móveis.
Sinto muito. Comecei a ler. Abri outro dia um livro
e uma semana depois decidi.
Não levo mais o lixo para a lixeira. Nem arrumo
a bagunça das folhas que caem no quintal.
Sinto muito.
Depois de ler percebi
a estética dos pratos, a estética dos traços, a ética,

A estática.
Olho minhas mãos quando mudam a página
dos livros, mãos bem mais macias que antes
e sinto que posso começar a ser a todo instante.
Sinto.

Qualquer coisa.
Não vou mais lavar. Nem levar. Seus tapetes
para lavar a seco. Tenho os olhos rasos d’água.
Sinto muito. Agora que comecei a ler quero entender.
O porquê, por quê? e o porquê.
Existem coisas. Eu li, e li, e li. Eu até sorri.
E deixei o feijão queimar...
Olha que feijão sempre demora para ficar pronto.
Considere que os tempos são outros...

Ah,
esqueci de dizer. Não vou mais.
Resolvi ficar um tempo comigo.
Resolvi ler sobre o que se passa conosco.
Você nem me espere. Você nem me chame. Não vou.
De tudo o que jamais li, de tudo o que jamais entendi,
você foi o que passou
Passou do limite, passou da medida,
passou do alfabeto.

Desalfabetizou.
Não vou mais lavar as coisas
e encobrir a verdadeira sujeira.
Nem limpar a poeira
e espalhar o pó daqui para lá e de lá pra cá.
Desinfetarei minhas mãos e não tocarei suas partes móveis.
Não tocarei no álcool.
Depois de tantos anos alfabetizada, aprendi a ler.
Depois de tanto tempo juntos, aprendi a separar
meu tênis do seu sapato,
minha gaveta das suas gravatas,
meu perfume do seu cheiro.
Minha tela da sua moldura.
Sendo assim, não lavo mais nada, e olho a sujeira
no fundo do copo.
Sempre chega o momento
de sacudir,
de investir,
de traduzir.
Não lavo mais pratos.
Li a assinatura da minha lei áurea
escrita em negro maiúsculo,
em letras tamanho 18, espaço duplo.

Aboli.
Não lavo mais os pratos
Quero travessas de prata,
Cozinha de luxo,
e jóias de ouro. Legítimas.
Está decretada a lei áurea.

 * Pixaim elétrico

Naquele dia
meu pixaim elétrico gritava alto
provocava sem alisar ninguém
meu cabelo estava cheio de si

Naquele dia
preparei a carapinha para enfrentar
a monotonia da paisagem da estrada
soltei os grampos e segui
de cara pro vento, bem desaforada
sem esconder volumes nem negar raízes

Pura filosofia
meu cabelo escuro, crespo, alto e grave
quase um caso de polícia
em meio à pasmaceira da cidade
incomodou identidades e pariu novas cabeças

Abaixo a demagogia
soltei as amarras e recusei qualquer relaxante
assumi as minhas raízes
ainda que brincasse com alguns matizes
confrontando o meu pixaim elétrico
com as cores pálidas do dia.

Pixaim, elétrico!

In: SOBRAL, Cristiane. Não vou mais lavar os pratos. Brasília: Editora Thesaurus, 2010, col. Oi Poema.

Foto de  katemangostar

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