O poema “Por um fio”, de Neide Almeida, caiu em minhas mãos de maneira inesperada, por meio de uma rápida “navegada” pelo Instagram, em uma tarde chuvosa de domingo. Ele chegou de mansinho, enchendo meu coração de afeto e curando feridas que eu nem sabia que tinha. O texto, que fala, grosso modo, sobre a relação do eu-lírico com o seu cabelo, possibilitou-me recordar momentos da minha história e tocar em algo muito profundo: a maneira como me olho, como me encaro diante do espelho. De repente, me percebi chorando diante do celular e mais uma vez, a poesia me tomava de tal forma, que causou uma revolução dentro de mim.

Acredito que uma das questões que mais marca a vivência de uma mulher negra é a sua fisionomia, pois seu corpo, sua pele e os seus cabelos, não correspondem ao que se difundiu neste país como belo, não se encaixam ao que ficou determinado como “padrão” de beleza. Prova disso, é uma recente pesquisa realizada nos EUA, que revelou que mulheres negras que usam cabelos naturais têm menos chances de conseguir um emprego, do que as brancas ou negras que alisam o cabelo. Ou ainda, dados do IBGE, divulgados no censo de 2010, que evidenciavam que 52% das mulheres negras não viviam em união estável no Brasil. Assim, desde meninas, somos perpassadas pela negação de nossas características, pela modificação de nossa aparência, na busca por sermos aceitas, por nos sentirmos bonitas.

Ainda na infância, entendi que meu cabelo crespo precisava ser “arrumado” e, “ajeitá-lo”, significava prendê-lo, alisá-lo ou cacheá-lo. Recordo-me do longo tempo que ficava sentada em uma almofada, enquanto meu cabelo era trançado para eu ir para a escola. Lembro-me do pente inapropriado para cabelo crespo, da divisão das madeixas, dos laços fortemente amarrados para não corrermos o risco do aparecimento de frizz, dos “tufos de cabelo” no chão e das finas trancinhas que iam se formando por meio das caprichosas mãos da minha mãe. Longas horas que misturavam afeto, ancestralidade e dor, constituíam um ritual comum, que já estava na minha família há anos e era transmitido de geração em geração.  

"Nasci de cabeça feita.
No começo, não sabia.
Entre os hábeis dedos maternos
via os meus crespos fios
domados por um laço,
que me prendia também por dentro. [...]"

Apesar da trança ser um elemento de grande importância na cultura africana e afro-brasileira, aqui funcionava somente como um jeito prático de manter o meu cabelo “ordenado”, já que minha mãe trabalhava o dia todo e não tínhamos tempo para cuidar dele. Era meu escudo, que me protegia das possíveis chacotas e humilhações em torno do cabelo crespo.

"[...] Cresci sob um mito,
medo de me ver refletida 
no espelho do que sempre fui. 
Mas ainda menina, meu desejo
já se enroscava, virava trança
e me protegia. [...]"

Chegou um tempo no qual as tranças não foram mais suficientes e acabei iniciando-me no mundo do procedimento químico. Como uma espécie de tradição, em um dado momento da vida, todas as mulheres da minha família iriam passar por essas técnicas de “melhoramento capilar”, como: alisamentos, relaxamentos, permanente afro, botox, escova progressiva com formol, escova progressiva sem formol, escova marroquina, escova de chocolate etc. Chegávamos a conversar sobre isso nas festas de família, trocando indicações de cabeleireiros, dicas de marcas de produtos e técnicas de como fazer uma escova ou chapinha durar por mais tempo.

 Na minha primeira tentativa de ter um “cabelo bonito”, deparei-me com o corte químico. Trata-se de uma reação do cabelo ao produto, provocando a sua quebra. Lembro-me que, além de ter que lidar com a dor de ver meus cabelos “descolando” da minha cabeça, ainda tive que ouvir da cabeleireira que a culpa era minha, pois meus fios eram “finos demais”. Culpadas, eu e minha mãe, sofremos juntas!

Para amenizar os efeitos da queda, utilizava acessórios, como faixas e turbantes, além de recorrer, novamente, às tranças. Na medida que o cabelo crescia após a queda, logo era apresentada a um novo procedimento estético e, na ilusão de ficar em paz com minha aparência, cedia a mais uma tentativa, a mais uma experiência.

Foram anos de agressão. A cada novo produto lançado no mercado, um novo trauma, uma nova dor, uma nova alergia no couro cabeludo e o constante desafio de construir uma autoestima que me possibilitasse crescer segura e forte, dentro desse contexto.  Mas como?

Na fase adulta, já cansada da guerra travada com meus cabelos, ouvi, pela primeira vez, a expressão Big chop, que significava “o grande corte”. Era o nome dado ao estágio que marcava o fim da transição capilar e o crescimento do cabelo totalmente natural pós-química. Nessa época, fortaleceu-se e ganhou mais visibilidade o movimento de mulheres pretas em torno da valorização da identidade negra e, consequentemente, do cabelo natural. Comecei a ver, com mais frequência, tanto na mídia, quanto nas ruas, mulheres com os seus cabelos crespos à solta. Recordo-me de perceber o surgimento de salões especializados e de encontrar, com maior facilidade nas lojas, cremes e demais cosméticos voltados para os fios não-lisos. Youtubers (hoje influencers digitais) negras começaram a surgir, gravando seus vídeos incentivando outras mulheres a assumirem seus crespos e ensinando-as a cuidarem deles.

Diante disso, pela primeira vez, comecei a pensar na possibilidade de utilizar meu cabelo natural.

Assisti a diversos vídeos e li vários relatos de mulheres que tinham optado por realizar “o grande corte”. O que mais me chamava a atenção, era o que me unia a todas elas: a trajetória de dor, inseguranças e baixa autoestima. Também me marcou como a tomada de decisão por abandonar a química, refletia um ato de muita coragem. Não era um simples corte, era um “grande corte”! Não era só sobre mudar o visual, era sobre aceitação, identificação, descobertas e curas.

Percebi que ainda não estava preparada. Era preciso ainda percorrer um longo caminho de autoconhecimento e resgate de memórias.

Em 2015, depois de uma longa vivência, fiz uma tentativa de Big chop! A motivação para tal decisão era a proximidade do meu casamento. Entendia que não poderia iniciar uma etapa tão importante da minha vida sem um conhecimento real tanto meu, quanto do meu futuro esposo, acerca da minha verdadeira aparência.

Cortei! Mas, no minuto seguinte, fui tomada por muita insegurança. Foram tantas críticas, que a vontade que tive foi de recolher os fios deixados no chão do salão e “colá-los” novamente na minha cabeça. Lembro-me que a primeira conhecida que encontrei, não escondeu o espanto e soltou: “O que você fez com seu cabelo? Você é louca? Como você teve coragem de fazer isso ás vésperas do seu casamento?” Por um momento, pensei: “É verdade! Deveria ter esperado passar o casamento! Como vou fazer um penteado decente sem cabelo?”

Até que, encontrei-me com olhares realmente importantes em minha vida: os da minha mãe e os do meu noivo. Pessoas que entendiam a razão de eu ter tomada aquela decisão. Pessoas que me acolheram e me deram a força que precisava para encarar minha verdadeira imagem.

Confesso que não foi fácil. Tanto que, no dia do casamento, tomada por muita insegurança, fui levada a me modificar. Fiz escova, mechas loiras, tudo o que tinha disponível para ficar "bonita" no meu grande dia! Apeguei-me a tudo o que me foi sugerido para ficar à altura do que a sociedade entendia que era uma noiva! Embora todos me dissessem que eu estava linda, não conseguia me sentir bem.

O momento do verdadeiro Big chop chegou no dia 2 de setembro de 2018. Acometida por um câncer, após a primeira sessão de quimioterapia, meus cabelos começaram a cair. Meu sobrinho raspou os fios que ainda existiam e, ao contrário do que se imagina, foi um momento muito leve, ao lado do meu esposo e alguns familiares.

Careca, olhei-me no espelho! E, pela primeira vez, estava em paz!

"[...] Quando me vi desnuda
olhei demoradamente: [...]"

Observava minha imagem e encontrava marcas nunca percebidas. Pude identificar o desenho do meu rosto, o formato do meu nariz e os contornos da minha boca.  E achava tudo tão bonito! Sim, era tudo muito lindo! Eu tinha os olhos da minha avó, a face do meu pai e o sorriso da minha mãe! Tudo ficou evidenciado, devido à ausência dos cabelos.

O tratamento de câncer foi um período no qual pude refletir sobre diversas questões. Talvez a ideia de uma morte iminente me fez entender que precisava resolver algumas pendências e, a relação com a minha aparência foi uma delas! Finalmente, estava livre! Aproveitei que o código da boa convivência, o manual da empatia ensina que não se pode dizer a uma mulher em tratamento contra o câncer que ela está feia e desfilei com a minha careca sem medo ou vergonha dos olhares curiosos! Recusei perucas, lenços e tudo que pudesse me privar da oportunidade de descobrir-me, reconhecer-me!

Estava tão segura que me deparei com pessoas que não acreditavam que eu tinha câncer, que achavam que minha careca era puro “estilo”. Havia descoberto verdades escondidas, traços que indicavam histórias, afetos que me preencheram. Não temia a deformação no seio, as cicatrizes no meu corpo, as queimaduras deixadas pela radioterapia, o inchaço causado pelo corticoide, pois tudo agora fazia sentido dentro de mim. Pela primeira vez, eu conseguia me olhar diante do espelho e eu estava feliz com o que via! 

Entendi, o real significado do Big chop! Ao cortar meus cabelos, me abri ao processo de “cortar”, romper com padrões que me foram impostos a vida inteira e que nada diziam sobre mim ou sobre minha história. "Cortei" convivências tóxicas. "Cortei" toda importância que dava às opiniões de quem nada conhecia sobre mim ou minhas lutas. fui cortando tudo que me fazia mal e enxerguei o que tanto buscava: a verdade!

"[...] Soltos, meus cabelos
diziam de mim
mais do que qualquer palavra,
raízes que me conectam
com uma gente que veio antes de mim
reinventada na menina que pari."

E, de posse dessa verdade, esperei meu cabelo crespo crescer! Estava ansiosa por conhecer sua verdadeira forma e textura. Aspectos que foram modificados desde quando me entendia por gente e que agora, teria a oportunidade de ver, acolher e amar!

Hoje, turbantes e tranças são para reafirmar minha ancestralidade, não mais para escondê-la! Cabelos livres, me encontrei, me emancipei, floresci!

Termino este texto como comecei, sob o efeito catártico de “Por um fio”:

Por um fio

Nasci de cabeça feita.
No começo, não sabia.
Entre os hábeis dedos maternos
via os meus crespos fios
domados por um laço,
que me prendia também por dentro. 
Cresci sob um mito,
medo de me ver refletida 
no espelho do que sempre fui. 
Mas ainda menina, meu desejo
já se enroscava, virava trança
e me protegia.

Quando me vi desnuda
olhei demoradamente:
os pés plantados no chão
as pernas, troncos fortes
o ventre escuro
pleno de inquietações.
Mãos e braços regidos
por nossos ancestrais
seios fartos
da seiva que alimenta o mundo.
Vi em mim o riso de meu pai
o olhar de minha mãe.
De repente, me encontrei.

Soltos, meus cabelos
diziam de mim
mais do que qualquer palavra,
raízes que me conectam
com uma gente que veio antes de mim
reinventada na menina que pari.

In: ALMEIDA, Neide. Nós - 20 poemas e uma Oferenda. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2018.

Foto: mimagephotography

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