Eu levo uma vida muito corrida. Mas, gosto de apreciar coisas bonitas e, esse movimento exige parada. Acho que é por isso que gosto tanto de poesia. Acho que é por isso que gosto tanto de primavera. Poesia e primavera, palavras e flores, melodia e colorido, são coisas que me fazem parar, que me dão a oportunidade de desacelerar mesmo diante de uma realidade que me exige sempre correr. Eu corro muito. Mas, conservo minhas palavras calmas. Eu corro muito. Mas, gosto de parar para ouvir. Essa habilidade, de falar lentamente e ouvir atentamente mesmo diante de um cotidiano acelerado, devo a poesia. Poesia é ritmo. Poesia é observação. Poesia é atenção. Assim como a primavera.

Eu corro muito, mas parei uns minutinhos para ler e apreciar a crônica que a Jenyffer Nascimento postou em sua página do Facebook, no último dia 22.[1] Num ritmo frenético, ela falava da correria da sua vida: de seu correr involuntário... de seu necessário, desgostoso e sobrevivente correr. Eu me identifiquei com ela, que “corre demais, mas aprecia viver calmamente”. Eu me identifiquei com ela, que “vive correndo, mas sente que nunca vence a corrida. corredora sem medalhas, assim ela pode definir”. Eu me identifiquei com sua correria. Minha mãe se identificou com a sua correria. Não é uma correria comum. É a correria que marca a vida de toda mulher preta, que “tem a impressão que já nasceu correndo. ou fugindo. ou tentando chegar.”

A gente tenta chegar, mesmo sabendo que há toda uma estrutura criada e alimentada para nos impedir, mas a gente continua tentando e correndo, porque aprendemos isso. Já nascemos correndo. Acreditamos que se pararmos, não conseguiremos “dar conta”, “não chegaremos lá”. Mas, a verdade é que a gente não dá conta mesmo. E, diferentemente das outras mulheres, que se não conseguirem “dar conta” está tudo bem, para nós, “não dar conta” significa perder mais ainda, perder ainda mais. A gente perde uma promoção no trabalho ou o próprio trabalho, a saúde do corpo, uma vaga na universidade, os primeiros passos dos filhos, a casa organizada, um diploma, o descanso, o equilíbrio emocional, um hobby... a gente se culpa por perder e não continuar o legado das nossas mais velhas... a gente se culpa por perder e não ter conseguido abrir caminhos para as próximas gerações... a gente sempre perde. “somos corredoras sem medalhas”. Diante disso, a gente aprende a driblar, subverter a lógica racista para poder viver, "apesar de". Uma maneira de transgredir, é parar. Nem que for uns minutinhos para observar a poética cotidiana ou, como escreveu Jenyffer: “A primavera, chegando sem pressa, para florir os caminhos de quem corre.”

Eu terminei de ler o texto da Jenyffer sem fôlego. Os períodos curtos, as letras minúsculas após os pontos, as palavras sem espaços e a identificação com a sua narrativa me deixaram sem ar. Então respirei. Parei, assim como ela, e fiquei observando um Ipê amarelo florido. Lembrei que era dia 22 de setembro. Lembrei que a primavera chegara. Eu continuei parada, subvertendo a ordem do dia. Fiquei contemplando, ainda que rapidamente, o Ipê. As flores param a gente. Desaceleram a gente.

Minha mãe é acelerada, como a maioria das mulheres negras. Chefe de família, não conseguia parar um segundo: era casa, trabalho, filha, comida, tarefa escolar, irmãos, mãe. Mas, eu me recordo que o único momento do dia, que a via parando era para conversar com as suas flores. Era ritual diário e sagrado. Até rezar, ela rezava fazendo outras coisas. Mas, flores, exigiam parada. Ela cuidava das flores e nesse movimento, ficava feliz ao perceber um novo broto, uma nova muda, uma nova flor. Regar as flores era sua transgressora maneira de parar. A Jenyffer passa batom. Ela escolhe um e passa cuidadosamente, calmamente no contorno dos seus lábios. Eu leio. Acordo com um livro na mão. Às vezes repito o mesmo poema durante dias. Às vezes até decoro. Mas, sempre tem um texto, um livro começado, uma página marcada, uma transgressão.

Mas, minha grande subversão foi há dois anos, quando parei  para tratar um câncer. Estava tomando um banho corrido, como sempre. A bucha caiu no chão e, para não perder tempo, decidi ensaboar-me com a palma da minha mão. Ao passar a mão sobre meu seio, parei. Ignorei. Parei novamente. E nessa alternância de ignorar e parar, cheguei ao diagnóstico, dois meses depois. Quando recebi a notícia, aos 30 anos recém-completados, sem nenhum caso na família, eu sinceramente não conseguia entender. Eu me achava nova demais para parar por um câncer. Tinha muito ainda para correr. Se parasse naquele momento, aí ficaria realmente impossível chegar em algum lugar. Eu calculei os prejuízos financeiros, acadêmicos e profissionais que uma parada naquele momento poderia me causar e decidi não parar. Como íamos pagar as contas? Como organizaríamos a casa? E meu trabalho? E se colocarem outro profissional no meu lugar? E minha tese? Eu tinha um prazo para entregar... Eram conquistas tão difíceis para uma mulher negra, que no meu entendimento, não poderia me dar ao luxo de parar. Foi quando passei a mão sobre meu seio e senti o tumor. Sim, dava para sentir o tumor. Eu me olhei no espelho e vi que o tumor poderia ser visto a olho nu. Qualquer um conseguia ver aquele caroço de 6 centímetros no meu seio. Parei. Me culpei. Eu que era tão atenta com tantas coisas: reuniões, vencimentos, horários, prazos e projetos... Eu que era tão atenta aos meus, tinha me negligenciado daquela forma. Como não vi? Como não percebi um câncer crescendo dentro de mim? Como fiquei tanto tempo sem me tocar? Como fiquei tanto tempo sem me apreciar? Como fiquei tanto tempo sem ler poesia? Quando foi que parei de observar os Ipês? Quando foi que deixei de passar batom? Então, entendi que precisava parar para poder viver. E, naquela situação, mais transgressor que concluir um doutorado ou construir uma carreira, era me manter viva!

Eu precisava correr para parar. Parar o quanto antes. Correr mais que o tumor. Ele era muito rápido e, para alcançá-lo, precisava parar. Entendi e parei a tempo.

Abri um livro e li um poema. Eu fui obrigada a desacelerar.

Iniciei minha travessia. As certezas se escaparam de mim, então me apaguei às palavras escritas, porque textos  permanecem. Voltei a ler o livro de poesias e passei a ver a poesia das coisas. Eu li. Eu escrevi. Eu ouvi. Eu dormi. Eu sonhei. Eu ganhei flores. Eu cuidei de flores. Eu vi a primavera chegar através da janela do hospital do câncer, enquanto recebia a infusão de quimioterapia. Eu aprendi a passar batom. Eu não usava maquiagem porque não tinha tempo. Eu aprendi a disfarçar as falhas da sobrancelha com sombra e lápis. Meus cílios caíram. Eu aprendi a usar uns postiços. Colar cílios exige parada. Eu ouvi histórias. Eu comecei a cozinhar. Cozinhar também exige parada. Diante da responsabilidade de preservar a minha imunidade, descobri novos sabores e novos hábitos. Sabores mais naturais, descontaminados da pressa, como o açafrão. Hábitos mais saudáveis, libertários, como dizer alguns "Nãos". Eu fiz coisas que há tempos queria fazer, mas não achava possível por falta de tempo. Eu tomei banho de cachoeira! Eu experimentei uma torta que há tempos namorava! Eu pensei que morreria sem apreciar o lado argentino das cataratas do Iguaçu e, após 9 horas de carro, lá estava eu, contemplando aquela maravilha! Eu até queria, mas não conseguia correr... Então caminhei... Eu sobrevivi...

Viva, eu entendi que precisava continuar nesse movimento transgressor de parar, para conseguir me manter viva! Meu corpo não era mais o mesmo. Para a medicina estou na fase da sobrevida. Ouvi, num consultório médico que sou uma sobrevivente. Sobrevivente eu sempre fui, antes mesmo de ter câncer! Agora, quero ser Supervivente! Ouvi isso de uma "oncoamiga" e resolvi apropriar-me desse direito!

Assim, continuo parando, subvertendo, escrevendo, me maquiando, lendo, admirando coisas bonitas. Viva! Supervivendo!

Abri o Facebook. Li a Literatura de Jenyffer Nascimento e vi que era dia 22. Percebi que iniciava mais uma primavera... Desacelerei... Eu estava viva!

[1] Nascimento, Jenyffer. tenho a impressão que já nasci correndo. São Paulo, 22 set.2020. Facebook: jenyffer.nascimento. Disponível em: https://www.facebook.com/jenyffer.nascimento

Foto de Barbara Fachin

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