17 de junho de 2004.

Durante o maior evento de moda da América Latina – o SPFW, elaboradíssimas roupas construídas em delicado papel eram desfiladas por modelos numa performance que simulava um desfile de moda. As roupas foram confeccionadas em papel vegetal de diversas gramaturas e modeladas milimetricamente sobre os corpos das modelos de forma primorosa, filigranas entalhados manualmente reproduziam rendas, gravações em altos e baixos relevos simulavam brocados. Foram consumidas meia tonelada de papel e mais de 700 horas de muito trabalho.

Assinado por Jum Nakao, o desfile A costura do invisível não chamou a atenção do público somente por sua beleza, matéria-prima inovadora e riqueza de detalhes – mas, sim, pelo ‘gran finale’, totalmente inesperado: em sua última entrada na passarela, com uma reviravolta sonora, todos os vestidos meticulosamente construídos foram destruídos em cena pelas próprias modelos.

Há 16 anos, Nakao, totalmente visionário, levantou uma discussão sobre o papel (literalmente!) da moda: afinal de contas, qual é o seu real valor? Eu já tinha visto este vídeo durante minha graduação lá em 2015 e, honestamente, não penso que estou trazendo isso à tona agora por ser um conteúdo inédito, porque acredito que muitas pessoas também já tenham o visto. Acontece que, revendo este desfile em 2020, sigo impressionada com sua sensibilidade à época e percebo, também, como esta crítica levantada por Nakao é atemporal.

É essa atemporalidade que eu acho extremamente relevante e importante de ser pontuada!

Em primeiro lugar, é importante ter em mente que em um desfile de moda, o que se vende é um conceito. Tudo é pensado de forma intencional, para criar o ambiente e a experiência de acordo com a mensagem que se quer passar: a escolha da música, das modelos, das luzes, dos elementos gráficos...

Em A costura do invisível, o conceito é estruturado como uma crítica ao próprio sistema da moda.

Agora, volte para o vídeo.

Você reparou que todas as modelos parecem ser iguais?

Podemos chamar isso de homogeneização. Todas as modelos seguem um padrão: são altas, magras e brancas. Reforço que essa é uma leitura minha, mas, buscando compreender todo o contexto da obra, me asseguro em dizer que a escolha das modelos foi estratégica e intencional. Isso tudo faz parte da crítica que Nakao quis levantar (de forma genial!).

Hoje em dia há, ao menos, uma preocupação com a diversidade e um aparente rompimento com alguns padrões estéticos impostos pela sociedade...no entanto, historicamente, sabe-se que as coisas eram bem diferentes lá em 2004.

Mas há outro detalhe importante para ser observado nas modelos: todas usam uma peruca de playmobil e uma roupa preta por baixo das peças de papel, transmitindo a sensação de terem sido costuradas sobre a pele.

Estes detalhes identificam uma das maiores críticas do desfile pois denotam, além da homogeneização intencional, uma objetificação das modelos. De forma sutil, não tão obvia, mas isso é reforçado também em suas expressões sérias e em suas formas meio robóticas de caminhar, como se elas fossem artificiais. Doido, né?

Modelos não são cabides ou vitrines, elas ainda são pessoas! Não vou me alongar aqui nesse ponto, porque ainda posso escrever um texto mais específico sobre os vários tipos de violência que as modelos sofrem com essa desumanização.

Agora, pensando nas roupas, o estranhamento é ainda maior: todas feitas com papel vegetal e em modelagens bem inusitadas. O desfile encerra-se de forma tradicional, com as 20 modelos entrando em fila, como forma de agradecimento, e logo em seguida aparece o estilista. A iluminação e a música sofrem uma mudança brusca e as modelos rasgam suas roupas, levando a plateia ao delírio, pois todo o trabalho para desenvolver estruturas, plissados e volumes se esvai, resultando em milhares de papeizinhos picotados ao chão.

Ninguém acreditava que aquelas preciosidades só existiram naquele momento. E o que resta? Somente imagens, registros de algo que não pode ser recuperado.

Nakao materializou e ilustrou muito bem a efemeridade da moda.

Efemeridade que é expressada diariamente com a indústria do fast-fashion, com a obsolescência programada e descarte dos produtos e com o nosso insaciável consumismo exagerado, desnecessário e avassalador.

Após o término do desfile, instaura-se uma polêmica. Alguns, posicionaram-se contra. Outros, a favor. Muitos ficaram sem entender. A grande verdade é que A costura do invisível não foi, apenas, um desfile de moda – mas, sim, um manifesto sobre a moda em si. Jum Nakao colocou em xeque toda uma estrutura imensa e dispendiosa que a moda movimenta.

Quando questionado sobre seu sentimento ao ver suas obras de arte sendo liquidadas num piscar de olhos, o estilista não hesita em dizer que não tinha apego por aquele trabalho e aquelas peças. O objetivo era provocar o choque, a reflexão.

Merecidamente, A Costura do Invisível recebeu o título de desfile da década pelo SPFW e foi reconhecido como um dos maiores desfiles do Século pelo Museu de Moda da França. É referência nas mais importantes publicações sobre Moda e Design do Mundo e integra acervos Internacionais de Museus de Arte e Moda.

É sempre bom aprender e refletir com você, Nakao.

Aguardo ansiosa pelo próximo!

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Foto da capa: Site oficial Jum Nakao.

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