Para o meu amor, que há quatro anos aceitou ser meu parceiro nesse revolucionário movimento de amar...

 

Hoje eu não quero falar sobre racismo e sexismo, hoje eu quero falar de amor!

Hoje eu não quero falar sobre o cânone literário brasileiro, que num movimento de nos desumanizar, de nos esvaziar de nossas complexidades e sentimentos, sempre nos representou, homens e mulheres negras, como pessoas que não amam, como pessoas não-dignas de dar e receber amor...

Hoje eu não quero falar sobre os estereótipos atribuídos aos homens e mulheres negras na mídia brasileira, apresentando-os, quase sempre, como seres hipersexualizados, com seus corpos colocados sempre a satisfação do outro...

Hoje eu não quero falar sobre como eu, que sempre fui amante dos livros, por não encontrar amores pretos nas poesias que lia, cresci acreditando que o amor não era para mim e para os meus. Sobre como essas representações negativas afetaram a minha autoestima, a minha identidade de mulher negra e as minhas ideias sobre relacionamentos afetivos...

Hoje eu não quero falar sobre como as feridas abertas na escravização e a violência causada pelo racismo estrutural afetaram e dificultam as relações afetivas entre pessoas negras...

Hoje eu não quero falar sobre a solidão da mulher negra, sobre uma realidade histórico-social que faz com que a maioria das mulheres pretas desse país, não possuam um relacionamento estável, devido ao racismo, que constituiu elementos estruturantes das práticas sociais e afetivas dos brasileiros, trazendo a mulher branca como ideal de mulher e de beleza, e fixando as mulheres negras em um lugar estereotipado de objeto sexual e servidão. Assim, difundiu-se a ideia de que a mulher negra não foi feita para ser amada...

Hoje eu não quero falar que esses estereótipos em torno do corpo da mulher negra fazem com que elas sejam a maioria vivendo em relacionamentos abusivos... Que elas sejam a maioria em casos de violência sexual, doméstica e obstetrícia nesse país...

Hoje eu não quero falar sobre o fato de pessoas pretas, em alguns casos, marcadas pelo racismo que enfrentam todos os dias, não queiram ver sua cor perpetuada em seus descendentes, pois não querem que também sofram o que eles já sofrem. Sendo assim, optam por casamentos inter-raciais para branquear seus filhos...

Hoje eu quero falar de amor, “apesar de”. Desse movimento insubmisso de querer amar e ser amada, mesmo sendo uma mulher negra.

Hoje quero falar da experiência de ler os livros de escritoras negras como, Lívia Natália, e encontrar em suas poéticas, a vivência do amor romântico entre pessoas pretas, antes nunca observada:

Antes que chova[1]
(Último poema)

Antes que ele venha eu já sou feliz.
Se ele vem às três da tarde,
eu já amanheço iluminada
pelo por vir do tempo,
e as horas caminham languidas enquanto eu me banho,
perfumo e me preparo
para sua chegada.

Ainda antes que ele chegue
Meu corpo está calmo e prenhe de sua presença.
E quando ele chega, eu já estou
Luminosa pelo fim da espera.

Antes que ele chegue eu já sou mulher,
Sou inteira e nada me aparta de mim.
Ele a mim se acrescenta,
onde nada falta.
E este excesso de aço e negrume,
estes brancos que se desenham
em barbas no seu rosto
esta boca de libélula nas minhas madrugadas
a mim se somam.

E apenas por que sou inteira
ele vem completar-me ali,
onde nada falta.
E o afeto que tange nossas almas
nos emancipa e dilata
como se o amor pudesse

ser todo feito de asas.

Eu li o poema e me recordei da necessidade e importância do auto-amor e do autocuidado!

Eu me recordei das diversas vezes que sonhei com um relacionamento assim, como o do texto, do amor da soma, da complementariedade, da cumplicidade, do dilatado.

Eu me recordei das vezes que não acreditei que poderia ser amada em minha inteireza.

Eu me recordei dos passeios de mãos dadas com meu nego, pelas ruas das cidades, sob sol, chuva e olhares...

Eu me recordei do dia que o vi lendo meus artigos, admirando meus trabalhos... do dia comemorei suas conquistas, do dia que lemos juntos Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Milton Santos, Silvio Almeida, Carolina Maria de Jesus , Conceição Evaristo e Cristiane Sobral.

Eu me recordei das vezes que choramos juntos, por medo do amor que sentíamos não ser forte o suficiente, para superar as feridas que o racismo e o machismo criaram em nós... Para desconstruir “verdades” que nos foram imputadas... Para nos curar de masculinidades tóxicas e falta de auto-amor e assim, podermos construir um relacionamento saudável, maduro e feliz.

Eu me recordei das vezes que dançamos juntos... Do seu esforço para me fazer rir... Das fotos que ilustravam sonhos de bibliotecas, quintais e jardins que você salvou nas pastas do pinterest... Da decoração que você construiu especialmente para a festa do meu aniversário.

Eu me recordei dos sonhos que eram individuais e que passaram a ser sonhados a dois!

Eu me recordei dos nossos estranhamentos, dos nossos pedidos de perdão e dos constantes esforços para sermos melhores para nós mesmos e para o outro!

Eu me recordei dos desafios que enfrentamos, dos sonhos que precisaram ser adaptados...

Eu me recordei do nosso desejo de tornar nosso amor fecundo, apesar dos nossos medos diante do racismo, que ceifa a vida e a autoestima das crianças negras... Do nosso sonho de gerar, apesar das nossas angustias frente ao desafio de criar crianças fortes e seguras, em uma sociedade racista...

Então, finalmente, eu me recordei de bell hooks, em seu ensaio “Vivendo de amor”[2], que afirmou: “Este é o poder do amor, o amor cura”.

Sim, amar e ser amado é um processo curativo e um direito que nós, mulheres negras, também temos que reivindicar!

Por isso, hoje eu quero falar de amor, apesar de...

Foto de StockSnap

 

[1] In: Natalia, Lívia. Dia bonito para chover. Rio de janeiro: Malê, 2017, p.67-68.

[2] Disponível em: https:<//www.geledes.org.br/vivendo-de-amor/> Acesso em 13 out. 2020.

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