Moda

Arte que faz moda, moda que faz arte: o manifesto antropofágico de Ronaldo Fraga

por Maria Torres 19.10.20

Moda e arte. Duas palavras inseparáveis e complementares.

Uma se alimenta de inspiração e surge do desejo de se tornar semelhante ao próximo, de gerar identificação e incitar desejos. A outra, é fruto de produções humanas e construtora cultural das civilizações. Ambas representam manifestações da sociedade – pois é a sociedade que faz, transforma, recria a arte que faz moda. E a moda que faz arte.

Há, também, outras duas semelhanças entre estes dois conceitos: ambos buscaram (e ainda buscam) referências externas para se obter o “selo de validação europeu” – mas há, também, aqueles que (felizmente) caminham na contramão desta "fuga para o estrangeiro" e valorizam o que se tem de melhor por aqui. 

Quando eu digo que arte e moda caminham juntas, pode-se dizer que há também uma terceira palavra que as conecta: a história.

A história nos conta que o Modernismo, movimento literário e artístico do início do século XX, tinha por objetivo romper com todos os ‘ismos’: o tradicionalismo, parnasianismo, simbolismo, academicismo (...)  – para, então, promover a libertação estética e a experimentação constante, a fim de conquistar a independência cultural do país.

Relembrando um pouquinho do que já foi aprendido nas aulas de história, a primeira Semana de Arte Moderna foi considerada a primeira manifestação de impacto do modernismo brasileiro, lá em fevereiro de 1922.

O alvoroço causado pela Semana de Arte Moderna foi tanto que o impacto das ideias de vanguarda lançou intelectuais, artistas, pintores e músicos em novas posições. Como consequência, iniciou-se um abandono gradual dos princípios formais que moldavam as artes da época e um novo ciclo começou – com o objetivo de conquistar uma expressão própria!

Em resumo: o principal objetivo alcançado pela agitação da semana de 1922 foi acordar o Brasil de um estado de estagnação.

O ânimo de renovação não somente exterminou ideias antiquadas, que predominavam nas artes e nas letras, como contribuiu para a formação de um espírito novo. Um espírito novo que valorizava a cultura local, uma arte genuinamente brasileira.

Como uma herança do modernismo, Oswald de Andrade criou o movimento antropofágico, que tinha como objetivo não só romper com padrões artísticos, culturais e políticos instituídos pela Europa, mas, também, questionava a sociedade patriarcal com seus repressivos padrões de conduta e condenava a imitação não digerida das influências da metrópole colonizadora. Eita!

A influência do movimento antropofágico, pós-Semana de Arte Moderna de 1922, não se restringiu somente a uma época ou período específico, como não se limitou à literatura ou às artes plásticas.

Após um período de esquecimento, alguns aspectos relacionados à antropofagia cultural brasileira voltaram a ser notados em diferentes âmbitos da produção cultural nacional.

Na moda, Ronaldo Fraga é um dos estilistas que compõem este “clã de defensoria” da produção cultural brasileira, ao criar um vestuário que valoriza as raízes, a geografia, a música e a literatura brasileiras.

Por trás de cada coleção, Fraga narra histórias emocionantes e transforma a indumentária em memória, poesia e cultura. Suas percepções ultrapassam o senso comum, ao despertarem sensibilidades em um mundo cada vez mais padronizado, que reflete o que vem de fora.

Cada coleção de Fraga carrega consigo essa marca de autenticidade brasileira... mas uma, em específico, me chamou a atenção, por ter sido inspirada em uma das obras de um grande escritor modernista: Mário de Andrade!

Turista Aprendiz, coleção elaborada para o verão de 2010/11, me encantou não só pela perfeição dos bordados, rendas e estampas meticulosamente desenvolvidas, mas, principalmente, pela imersão na história da cultura, dos costumes e do pensamento de Mário de Andrade, durante suas viagens etnográficas pelo Brasil.

O resultado final, em sua complexidade, é a externalização da paixão que Fraga sente pela multiplicidade cultural do Brasil.  Ao descrever a coleção Turista Aprendiz em seu blog, Fraga revela:

Entre 1927 e 1929, Mário de Andrade (1893-1945) realizou uma série de viagens etnográficas aos estados do Norte e Nordeste Brasileiro. Fez mais de 600 fotos, registrou hábitos locais e fez inúmeros registros de viagem. Este material mais tarde seria reunido em Livro, batizado de “O TURISTA APRENDIZ”. Na realidade não se tratou de uma viagem turística. Mário, registrando tudo, procurou traçar as coordenadas de uma Cultura Nacional através da Cultura Popular, memórias de ofício, música e culinária. Observou afetuosamente o primitivo, o rústico, manifestações populares com os olhos de um modernista metropolitano. Bebeu e comeu cores e nomes…

O meu grande sonho sempre foi fazer o mesmo percurso que ele, projeto até aqui impossibilitado por compromissos que me fazem escravo do meu tempo. Paralelo ao trabalho com minha marca, venho desde 2005 trabalhando com inserção de design em cooperativas e grupos de artesãos de Norte a Sul do Brasil. Só a pouco me dei conta que já vinha a tanto tempo registrando experiências e histórias como um Turista Aprendiz. Esta coleção é o resultado de um projeto desenvolvido junto a um grupo de bordadeiras da cidade de Passira no Agreste Pernambucano. Aqui a cultura pernambucana vem costurada, estampada e bordada em linho, seda, bases de algodão e jacquards imitando renda.

Meus olhos entram em festa por um Brasil feito à mão. Um País bordado de avessos reveladores… Ponto e linha desenham estórias de sobrevivência, amor e dor, refletindo a alma de um povo gentil, festivo, generoso e lindo.

Me embolo de ‘pontos-cheio’, ‘crivos’, ‘matames’, ‘pontos sombra’, ‘renda renascença’… Literalmente por um fio, pontos de um ofício ameaçado de extinção.

Aqui serei eternamente Aprendiz.

Ronaldo Fraga.

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Em entrevista ao Estado de São Paulo, Ronaldo Fraga explicou que quando chegou a Passira, cidade que tem a tradição do bordado, descobriu que para muitas garotas era mais rentável se prostituir do que continuar a tradição das avós.

Em uma de suas viagens, ele também se descobriu como um turista aprendiz – que assim como Mário de Andrade, adora fotografar, filmar, escrever sobre suas viagens.

Se eu soubesse escrever, escrevia. Mas sei é fazer roupa. Então, criei uma coleção!

Ao resgatar as tradições das bordadeiras em Passira, além de criar um produto artesanal com grande significação no mercado, Fraga propôs uma nova estratégia no desenvolvimento dos produtos, adquirindo valor simbólico e social.

Cada peça criada pelo estilista ganhou uma etiqueta com a indicação da bordadeira responsável. Assim, quem comprasse e quisesse adquirir outro trabalho dessa artesã, poderia entrar em contato com ela, movimentando o mercado artesanal que engloba o trabalho das rendeiras.

Moda boa é essa: fusão de arte, cultura, política...mas melhor do que isso, é a moda intencional, com poder de transformação.

Obrigada, novamente, Fraga!

Fotos: FFW e Grão Imagem. 

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