Se há um mérito em fazer cinema no Brasil, certamente está ligado ao fato de que, fazer cinema – em si, já é um desafio enorme, considerando a produção, orçamento, captação de recursos..., mas fazer cinema, acreditando que aquela história pode atravessar a vida das pessoas de alguma maneira, esse é um mérito dos grandes! E é nesse espírito que considero uma das recentes produções incluídas no catálogo da Netflix Brasil, geniais. Tanto pelo feito, quanto pela abordagem e, claro, pelas escolhas do diretor, que a princípio podem soar um tanto “fabulatórias”, mas é só se aproximar um pouco do discurso, que o espectador acolhe a mágica com tons de esperança e resiliência, pois entre outras coisas, é sobre isso que fala Alice Junior.

Há tantas questões pertinentes no longa, que fica difícil fazer uma escolha específica para levantar aqui, ainda mais para esta que vos fala, uma eterna apaixonada pelos longas de estilo coming of age. Eu confesso a vocês que por trás dessa imagem de quem adoooooora um cinema de autor, existe a boa, velha e fanática pela temática que gira em torno das transições infância – adolescência – juventude; sempre foram meus filmes favoritos, e essa coisa de tratar o processo de amadurecimento costuma mexer comigo até hoje no auge dos meus trinta anos rsrs. Foi uma fase intensa, de experiências ricas, mas também de muitas limitações e enfrentamentos no contexto escolar.

Por isso que quando resolvi escrever sobre Alice, pensei de que maneira o longa mais se conectava comigo. Já falei disso por aqui, e acho que a coluna sempre acaba ganhando uma certa camada pessoal, uma escolha muito própria desde quando comecei a escrever estes textos. Estabelecida essa relação com o filme, decidi que seria pertinente dar um alô no diretor, Gil Baroni, considerando que o conheci em uma das edições dos Festival Kinoarte de Cinema, em Londrina. O Gil é curitibano, uma pessoa doce, e que adoro seguir nas redes sociais. Embora não tenhamos intimidade, gosto da maneira como ele se comporta no mundinho virtual, sempre alto astral e com uma energia positiva. Como isso é importante nos dias atuais, não?!

Passei a mão no telefone e tratei de arrumar o zap dele. Fiz uma meia dúzia de perguntas, quase todas com uma resposta que eu já sabia mais ou menos, visto que havia lido críticas na ocasião de estreia, e o que mais impressionou foi especificamente um último áudio, em que o Gil falou sobre a importância de ter um filme que suscite o debate, que abra o diálogo e traga principalmente informações. Pois bem, Alice Junior é a história de uma adolescente trans, Alice, interpretada pela atriz Anne Celestino, e que diante dos desafios que são próprios à idade, ela enfrenta também a mudança de cidade, de Recife para o interior do Paraná, e o sonho do primeiro beijo, típica questão adolescente.

Ao contrário das minhas crises nessa fase, a personagem encara o mundo de peito aberto, e acho que essa é uma característica muito potente que vai na contramão dos discursos das produções sobre essa fase da vida. É raro encontrar pessoas extremamente jovens que se posicionem de maneira tão autêntica, não só na internet, mas nas suas experiências e comportamentos práticos. Acho que isso é mais comum na história desses jovens que desde cedo já tem que lutar muito para serem reconhecidos e socialmente aceitos. De modo geral todos nós enfrentamos dificuldades na adolescência, mas há uma intensidade e demanda quanto a sexualidade, principalmente num país como nosso, que atua de maneira severa nos valores patriarcais e tradicionais.

Vejo o filme utilizando de uma fórmula, principalmente no que diz respeito ao roteiro, bastante evidente em longas deste gênero, mas que desloca os protagonismos e concede ao espectador uma oportunidade singular de reflexão sobre tópicos que às vezes lemos incansavelmente na internet, mas debatemos muito pouco em família, por exemplo.  Apesar de tratar de um tema denso, que é a transfobia no Brasil, Gil consegue eliminar as obscurescências sem necessariamente simular uma realidade pobre e esvaziada de sentidos, mas de maneira carinhosa, estabelece possíveis formas de conversar com o público a respeito destas questões. Talvez isso se deva a maneira como o próprio diretor se relaciona com estas questões, mas me soa bastante genuíno trazer tais provocações com tons quase que “didáticos”, como ele mesmo ressalta sobre a repercussão de Alice Junior:

“O que eu tenho sentido é muito mais adesão, carinho e apoio as questões que ele trata, do que alguma resistência. O filme tem sido muito bem recebido nas comunidades LGBTQIA+ e isso para mim é muito importante porque levanta um debate de extrema importância para o nosso país. Em Alice Junior você tem uma personagem que é trans, que é uma heroína, que leva a vida de cabeça em pé e que tem um pai que a aceita. Por isso o filme acaba ganhando um tom didático nesse sentido, mas sem ser verborrágico. Essas escolhas dizem sobre informações de maneira muito objetiva e isso não desmerece o filme, pelo contrário, isso soma. O melhor jeito de combater um governo que odeia cultura, que odeia artistas, é transbordando informação. Estar antenado com o nosso tempo, falar sobre ele e provocar as pessoas nesse sentido”, completa.

O filme teve sua estreia no Festival de Cinema de Vitória (ES), ano passado, circulou por outros grandes festivais no Brasil, como o Festival do Rio, Mostra Internacional de São Paulo e fez a rapa nas premiações do Festival de Brasília, incluindo o prêmio de melhor atriz para Anne Celestino, a Alice. “Quase um feito, considerando a temática”, nas palavras de Gil. Além disso, Alice Junior teve sua estreia fora do país em um dos festivais mais badalados da Europa, o Festival Internacional de Cinema de Berlim, e foi aplaudido de pé. O longa já está nas plataformas de streaming, como Now e Netflix, e foi incluído recentemente na lista de filmes recomendados pela Rolling Stones Brasil. Obrigada por este presente, Gil, e obrigada por trazer cores tão belas para a tela do cinema. Alice Junior é, sem dúvida, uma referência para diretores que desejam contar histórias semelhantes e que fujam das narrativas hegemônicas. Um filme doce, como você.

 

(Sobe créditos finais).

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