Para a querida Nana Martins, por toda troca e por sua poética quilombo!

“Vozes-mulheres”, de Conceição Evaristo, é, para mim, um dos poemas mais importantes da Literatura Brasileira, pois, utilizando-se do verbo “ecoar”, a poeta narra o caminho de resistência percorrido por mulheres de uma mesma linhagem, desde o rapto no continente africano até os dias atuais, diante do projeto de silenciamento de suas vozes. E, nesse movimento, podemos dizer, que a poeta vai descrevendo a trajetória da voz da mulher negra no Brasil, em suas diversas manifestações, desde os murmúrios do período colonial até a produção literária atual:

A voz da minha bisavó ecoou
criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.

A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.

A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
    e
    fome.

A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato

O ontem – o hoje – o agora.

Na voz de minha filha

se fará ouvir a ressonância

O eco da vida-liberdade.

(EVARISTO, 2017, p. 34-35)

Conheci esse poema em 2008, quando ouvi a própria Conceição recitando seu texto, durante um evento na UEL. O auditório estava lotado e, na plateia havia várias mulheres negras, dentre elas, a Nana Martins, que na época era “apenas” minha companheira de pesquisas e eu nem sabia que ela era escritora. Ouvimos emocionadas. Olhávamos para nossa querida mais velha naquele palco, tão imensa e, ao mesmo tempo, tão generosa e ficávamos pensando na nossa responsabilidade de, na condição de herdeiras, fazer ressoar as vozes mudas e engasgadas de nossas ancestrais.

Doze anos depois, esse poema e essa cena retornaram em minha mente quando vi a lista com nomes das obras semifanalistas ao Prêmio Jabuti e, dentre as várias obras, distribuídas em diversas categorias, encontrei livros de jovens escritoras negras. Escritoras de gêneros diversos, publicando em independentes e em grandes editoras, subvertendo todo projeto colonial, patriarcal e racista de abafar as vozes das mulheres negras. Minha alegria foi maior ainda, quando vi que uma dessas escritoras era a querida Nana Martins, uma das autoras de Cadernos negros 42, que concorre na categoria de melhor livro de contos.  E, diante disso, não tive como não associar esse fato às últimas estrofes do poema de Conceição: “Na voz de minha filha/ se fará ouvir a ressonância/ e o eco da vida-liberdade.”

Eu fui me lembrando, das diversas vezes, que ouvi Conceição falando de como essa nova geração tem realizado sonhos das nossas queridas mais velhas. De como a juventude escrevivida desse novo grupo de escritoras negras, alimenta e fortifica a sua velhice, pois são os movimentos dessas jovens que dão sentido a tudo que ela e suas irmãs lutaram para realizar. Sem a poética das mais novas, dando continuidade a esse exercício insubmisso de “ecoar”, toda a luta das mais velhas estaria esvaziada.

Eu me recordei de Carolina Maria de Jesus, que em Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada (1961), relatou o momento em que foi conhecer a Academia Brasileira de Letras e ela estava fechada. Todavia, mesmo com as portas fechadas, ela tirou uma foto ao lado do busto de Machado de Assis, do lado de fora mesmo. Eu leio esse parágrafo é só consigo pensar no movimento quilombola de Carolina, que mesmo com as “portas da literatura” fechadas para ela, “infiltra-se” e assenhora-se da palavra, toma a sua Voz e, abre caminhos para que Conceição e Nana possam ousar ocupar o espaço da literatura, historicamente negado às mulheres negras!

Esse ato insubmisso de Carolina é atualizado no movimento de Conceição, que ganhou o Jabuti em 2015 e se candidatou para uma cadeira da ABL em 2018. Esse ato  também revive na poética combativa e reivindicadora de Nana, que nos emociona ao recolher as vozes de todas as suas ancestrais e escrever:

 

Voz de uma afrodescendente

Em minha voz sinto o Eco

da poesia perdida de meus ancestrais,

O dizer emudecido pela incompreensão.

 

Em minha voz sinto o Coro

dos poetas-resistência de África

E o lamurio de uma mãe-ausência

que me espera, me acolhe,

que chora pela minha partida-presença

 

Em minha voz sinto o Legado

deixado pelos poetas afro-brasileiros

E o timbre grave de uma luta de resistência.

 

Em minha voz sinto que se esconde o grito

de liberdade de minha geração,

Grito esse que me faz livre de todas as

Amarras, de todas as correntes,

Grito-eco, grito-coro, grito-legado

Grito-liberdade.

(MARTINS, [n.d], p.16)

 

R(existo)

Resisto à intermitência do tempo, itinerante,

que arrasta minhas memórias.

 

Resisto à memória dos homens

que parecem esquecer o que foi feito de mim

ao longe dos anos.

 

Resisto aos sorrisos frágeis, aos tapas nas costas,

e aos que dizem que somos todos iguais,

pendurados em seus palanques,

altares de perdição.

 

Resisto a mim mesma,

a inquietude do sou,

do que espero, do que perco, por querer ser.

 

Resisto aos furacões, as turbulências pessoas

as estradas de chão duro, intermináveis...

resisto porque preciso desesperadamente

                     EXISTIR!

(MARTINS, [n.d], p.28)

Finalizo esse texto, na esperança do ressoar dessas insurgentes poéticas, que ao ocupar esses espaços, propõem novas representações e modifiquem relações! Finalizo na torcida por um Jabuti insubmisso e que ecoe vozes engasgadas!

EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. 3. ed. Rio de Janeiro: Malê, 2017.

MARTINS, Nana. Pedaços de escrita. (autopublicação).

Publicidade

Como anunciar?

Mostre sua marca ou seu negócio para Londrina e região! Saiba mais