Diversidade

Presença do negro na universidade aumenta consciência da população sobre o racismo

por Mariana Paschoal 20.11.20

No Brasil, 55,4% das pessoas se declaram negras, de acordo com a mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Apesar de ser a maioria no país, a presença do negro em áreas como a educação é baixa e mostra que ainda vivemos em um mundo de discriminação. A Universidade Estadual de Londrina (UEL), por exemplo, conta com quase 1.600 professores. Desses, 13 se declaram pretos, de acordo com a professora Maria Nilza da Silva, coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) e professora do Departamento de Ciências Sociais da principal universidade pública da região. Em relação aos estudantes da instituição, em 2019, apenas 8% dos ingressantes pelo vestibular eram negros de escola pública e 5%, negros independente do percurso.

A porcentagem baixa é sinal de que a universidade pública ainda é reduto da elite e que a população negra  não tem as mesmas oportunidades. No entanto, o acesso dos negros à educação já foi muito mais difícil e trabalhos como o da professora Maria Nilza, que está à frente do NEAB, são essenciais para mudanças positivas e para garantir ações afirmativas. Em entrevista com a professora, conhecemos mais sobre essa trajetória de mudanças na luta contra o racismo em Londrina, principalmente dentro da Universidade. Confira:

Londrinando (L): Quais são as principais ações do NEAB?

Maria Nilza (MN): O NEAB desenvolve atividades de pesquisa e extensão. Um exemplo é a formação continuada de professores. Ministramos vários cursos ao longo do ano para formar professores da cidade em relação à lei 10.639, promulgada em 2003, e que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana no currículo escolar. O grande problema é que a maioria dos professores, assim como eu, não teve estudos sobre a população afro-brasileira e africana. Então, com a legislação, eles precisaram se formar. Começamos a realizar esse trabalho através de uma parceria com o Núcleo Regional de Educação e oferecemos cursos de formação continuada nas escolas. Os professores também vêm até a UEL para ter aulas sobre relações raciais, população negra, população indígena…Também ministramos cursos para a comunidade em geral e para o funcionalismo público, no sentido de prepará-lo para o combate ao racismo. O grande objetivo é tornar a história do negro mais conhecida.

Além das atividades de extensão, o Núcleo também desenvolve atividades de pesquisa. Vários estudantes da UEL, muitos deles cotistas, fizeram dissertações, trabalhos de conclusão de curso e teses que estudaram não só a população negra dentro da universidade, mas também fora dela. Então no site do NEAB é possível encontrar vários livros produzidos por esses alunos que falam sobre a história, a cultura e a população negra.

L: Qual é a importância desse trabalho?

MN: Todas as pesquisas vinculadas ao NEAB são sobre a população negra e, sobretudo, sobre a população negra de Londrina. Quando eu cheguei à cidade, em 1998, praticamente não existia registro da história da população negra daqui. Não havia uma sistematização da contribuição da população negra em Londrina e o NEAB começou a desenvolver pesquisas nesse sentido. 

É importante destacar que também temos um papel de apoiar ações afirmativas, como o sistema de cotas. Geralmente estamos presentes na comissão de avaliação das ações afirmativas, na comissão de homologação do sistema de cotas, das matrículas, por exemplo. Temos membros para identificar se aquela pessoa que está prestando vestibular é realmente negra. Essa comissão garante que as ações afirmativas, as políticas públicas, sejam realmente direcionadas àquelas pessoas para as quais as ações foram criadas.

L: O que você sentiu que mudou desde que chegou a Londrina, em 1998, em relação ao combate ao racismo?

MN: Visivelmente, a primeira coisa que eu notei foi o ingresso de pessoas negras na universidade. Antes, quando ministrávamos aulas, tínhamos um negro na sala de aula, às vezes nem tinha. Quando circulávamos pelo Restaurante Universitário, pelo campus, tínhamos pouquíssimos negros. Hoje já percebemos que a população negra está presente em praticamente todos os cursos da UEL, mas nem sempre foi desse jeito. Na primeira etapa do sistema de cotas, nos primeiros sete anos, ela funcionava com proporcionalidade. A UEL implantou cotas de 40%, mas até 20% era destinado a negros oriundos de escola pública. Então, o número de negros aprovados dependia do número de inscritos. Por causa da pobreza, das dificuldades, por entrar no mercado de trabalho muito mais cedo, a população negra preferia concorrer a cursos dos quais eles tinham certeza que pudessem entrar e trabalhar ao mesmo tempo. Então tivemos uma grande quantidade de inscritos em cursos menos concorridos e um número menor de negros em cursos integrais, por exemplo. Na primeira avaliação do sistema, que aconteceu em 2011, essa questão foi revista e a UEL passou a destinar 40% das vagas para estudantes de escola pública, sendo metade efetivamente para os negros. Aí vimos a população negra ingressar em todos os cursos.

Outro momento importante foi a avaliação do sistema de cotas de 2017. Essa avaliação trouxe um novo patamar. Ampliou-se as cotas. Além desses 40% destinados a estudantes de escola pública, a UEL destinou 5% para negros e negras independente do percurso. Porque na verdade existe um racismo estrutural na sociedade brasileira e independente da condição social, independente do poder aquisitivo, independente da origem, a população negra é discriminada. Ela tem uma desvantagem e a UEL foi pioneira ao pensar nisso. Várias universidades estão olhando para a UEL e debatendo a possibilidade de não reservar vagas apenas para estudantes negros oriundos de escola pública.

L: Isso foi somente em 2017. Na sua opinião, por que a luta contra o racismo costuma ser tão difícil e demorada?

MN: Essa pergunta demoraria muito para ser respondida porque, na verdade, nós temos o racismo científico dos séculos XVIII e XIX que atribui à população negra uma não-humanidade. Muitas pessoas passam a ver, desde aquele momento, a população negra, independente de escravidão ou não, destituída de uma humanidade. Por que existe tanta  violência contra a mulher negra e o jovem negro? Cerca de 75% dos homicídios cometidos no Brasil são contra a população negra. Dados como esse mostram que a população negra vale muito menos. Por isso existem campanhas como a "Black Lives Matter": para mostrar que a vida da população negra tem valor, exatamente porque não é um problema somente no Brasil, mas é um problema que perpassa todas as instituições na maioria dos países do mundo. O racismo é extremamente difícil de se combater porque está presente em várias instituições, em praticamente todas as instituições, e muitas vezes as pessoas o reproduzem até de uma forma inconsciente - e isso não diminui a responsabilidade delas.

Então, com ações afirmativas como o sistema de cotas e a lei 10.639, que oferecem a possibilidade de aumentar o número de pesquisadores negros e não-negros que fazem pesquisas sobre a população negra, a gente percebe que aumenta também o número de pessoas conscientes com o racismo e que começam a se comprometer com uma luta antirracista. Ao mesmo tempo, percebemos também nos últimos anos, até por consequência do atual governo, que muitas pessoas que desenvolvem um racismo, que são xenófobas, tiveram quase que um amparo para discriminar. Vimos um aumento da discriminação, da violência contra a população negra e indígena, contra grupos considerados vulneráveis… Contudo, temos visto também uma ascensão de jovens que começam a ingressar nas universidades, a produzir conhecimento, uma microrrevolução com políticas de ações afirmativas, tanto em relação aos indígenas, quanto em relação à população negra.

L: Nesse sentido, qual é a sua avaliação do cenário atual na questão da luta contra o racismo?

MN: Eu acredito que a luta contra o racismo se tornou muito mais visível nos últimos tempos. Para você ter uma ideia: eu saí de São Paulo com uma tese sobre segregação urbana e racial na capital paulista para chegar a Londrina, como professora da UEL, em 1998. A pesquisa contava com vários dados estatísticos sobre a desigualdade racial, mas naquela época, era ainda uma novidade. Era necessário mostrar que a população negra era discriminada, que havia desigualdade. Hoje, as pessoas praticamente não têm dúvidas em relação a isso. Só que, quando eu converso com meus colegas do movimento negro, percebemos que as manifestações racistas também aumentaram. E, ao mesmo tempo, temos mais jovens que se aprofundam e produzem conhecimento sobre a população negra. Já não são somente professores, doutores, brancos que utilizam a população negra para seus projetos de pesquisa, mas os próprios negros estão produzindo. Isso causa um certo incômodo. Quando a população negra mostra que é importante falar sobre a população afro-brasileira, sobre a intolerância, sobre as perseguições, que é importante falar sobre a nossa identidade, valorizar a nossa cultura, o nosso cabelo, o ser negro, cria-se uma resistência.

Isso acontece porque a universidade, sobretudo a universidade pública, é um lugar privilegiado da elite. A elite sempre considerou a universidade pública como seu lugar. E quando abrimos a possibilidade de se ter colegas negros, de se ter estudantes negros e negras, provocamos também uma reação.

L: E essa presença do negro na universidade era algo que você via em 1998?

MN: Em hipótese alguma. Em 1998, eu ministrava palestras para provar que havia desigualdade. Eu apresentava dados e informações de pesquisadores que mostravam que a desigualdade estava no mercado de trabalho, na educação… Hoje ainda continuo com estudos através de dados quantitativos, mas todas as pessoas sabem que a discriminação racial existe. Meus alunos que passaram pelo sistema de cotas nos últimos anos fizeram mestrado, doutorado, são hoje professores e professoras do ensino superior e têm uma produção de conhecimento muito mais profunda. Eles trazem uma contribuição de uma nova epistemologia para a universidade produzida por pessoas negras, utilizando autores negros. Então hoje o foco mudou.

Foto de capa: UEL

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