Na História do Brasil
As mulheres negras são
Baluarte e segurança
Com grandeza e emoção
Lutadoras dessa terra
E heroínas da nação.
(Jarid Arraes)
“Antes de chegar à idade adulta, nunca tinha ouvido falar de uma mulher negra que tivesse feito algo de importante na História”. São com essas palavras, que a escritora Jarid Arraes, inicia o texto da orelha do seu livro Heroínas Negras brasileiras: em 15 cordéis (2020) que. como o título sugere, narra a história de 15 grandes mulheres negras. Eu, assim como ela e a maioria das pessoas negras desse país, cresci vendo todas as personalidades negras da nossa história serem ocultadas (para se ter ideia, das 15 histórias recontadas por Jarid, eu só conhecia sete.) e, por um bom tempo, acreditei que minha descendência não tinha nada de heroico, visto que, se resumia a narrativa dos negros escravos que sofreram muito até uma princesa branca lutar pela liberdade deles, assinando a Lei Aurea, em 1888. Só isso, nenhuma linha a mais.
Somente no auge dos meus 20 anos, em um projeto de extensão do Núcleo de estudos afro-brasileiros e africanos da faculdade, que fui saber que o meu povo sempre desenvolveu estratégias de resistência e sempre foi insubmisso, desde a chegada do primeiro navio negreiro. Foi também nessa época, que descobri que existiam reinos no continente africano e que reis, rainhas, príncipes e princesas tinham sido escravizados.
Foi o caso de Aqualtune, princesa de um reino do Congo, grande estrategista, que liderou exércitos e foi sequestrada para ser trazida para o Brasil, como escravizada reprodutora. Grávida, organizou uma fuga para o quilombo dos Palmares, onde foi grande líder e deu à luz a Ganga Zumba e Gana, importantes nomes de Palmares e, Sabina, que seria a mãe de Zumbi. Morreu em um ataque ao quilombo. Entretanto, em todo esse tempo, nunca perdeu sua majestade. E eu, até a idade adulta, não sabia que poderia ser descendente de uma princesa do Congo. Fiquei indignada, como Arraes:
“[...]Eu só acho um absurdo
Porque nunca ouvi falar
Na escola ou na tevê
Nunca vi ninguém contar
Sobre a garra de Aqualtune
E o que pôde conquistar
Uma história como a dela
Deveria ser contada
Em todo livro escolar
Deveria ser lembrada
No teatro e no cinema
Que ela fosse retratada.
Mas eu tive que sozinha
As informações buscar
Foi porque ouvi seu nome
Uma amiga mencionar
E por curiosidade
Fui on-line pesquisar.[1]”
Assim como não conhecia Aqualtune, também não conhecia Luísa Mahin, princesa africana da Costa da Mina, que foi escravizada no Brasil. Praticante do Islamismo, quando conseguiu alforria, trabalhou como quituteira em Salvador e
“Nos quitutes que vendia
Ela neles enrolava
As mensagens escondidas
Que em árabe espalhava
Ajudando nos motins
Que também organizava[2]”.
Participou da Revolta da Sabinada e da Revolta dos Malês, na qual foi uma das líderes. E, também era mãe do poeta abolicionista Luís Gama.
O mesmo apagamento se deu com a história de Dandara dos Palmares, que lutou na resistência contra a escravização, ao lado de Zumbi, com quem teve três filhos e, durante um ataque ao quilombo, suicidou-se para não ser escravizada:
“Até mesmo a sua morte
De heroísmo foi repleta
E a mensagem que anuncia
Entendemos bem completa:
Rejeitar a rendição
É a nossa condição
Como um grito de alerta”[3]
Também com a Tia Ciata, mãe de Santo baiana, que no Rio de Janeiro foi quituteira e, em seus alimentos, expressava toda sua crença, apesar do Candomblé ser proibido na época. Sua casa ficou conhecida como um lugar de resistência e manutenção das crenças e cultura afro-brasileiras, onde abrigou diversos artistas da época e, de onde nasceu o primeiro samba. Foi perseguida e só teve paz, quando, por ser curandeira, foi chamada para curar uma ferida na perna do Presidente Wenceslau Braz.
“Tia Ciata foi chamada
Por Oxum fortalecida
Sua origem enalteceu
Mesmo sendo perceguida
E por causa dessa luta
Hoje eu sou agradecida”[4]
Também com Laudelina de Melo, que criou o primeiro sindicato de empregadas domésticas, com Antonieta de Barros, a primeira deputada estadual negra do país e, com tantas outras silenciadas pela história escrita por mãos brancas e masculinas.
O livro de Jarid é farol que nos guia e nos leva a uma vivência ancestral poderosa! Que nos possibilita encontrar com uma linhagem real, forte, estrategista, bela e resistente! Que reconta a história que nos foi roubada!
Na medida que ia lendo os cordéis, o sentimento era um misto de raiva, por não conhecer aquelas mulheres e, gratidão, por naquele momento, poder me reconhecer naquelas histórias!
Eu me identificava com força de Maria Felipa e Esperança Garcia, com a capacidade estrategista de Tereza de Benguela e Mariana Crioula, com o amor pela literatura e pela educação de Maria Firmina dos Reis e Carolina Maria de Jesus, com a realeza de Zacimba Gaba e Na agontimé, com o senso de justiça de Eva Maria do Bonsucesso.
Na apreciação de cada verso, fui entendo a grandeza e o poder da linhagem da qual faço parte! Eu não precisava mais das heroínas, das epistemologias, das histórias dos outros, pois tinha descoberto as minhas! Estava completa! Compreendi que a voz que enuncio e as palavras que distribuo a vocês hoje, é resultado das lutas por liberdade e direitos de cada uma dessas mulheres que foram ocultadas! Entendi que as heroínas negras que ainda estão por vir, serão forjadas também nessas narrativas! Assim, agora, mais do que nunca, recordar é preciso!
Que a partir desse momento
Nossa história vá gravada
Tendo o reconhecimento
Pela batalha travada
Pois só assim que teremos
Nossa alma bem lavada[5]
Na foto: Eu olhando em um espelho. Na imagem refletida, eu e Carolina Maria de Jesus. Foto tirada na exposição “Carolina em nós”, idealizada pelo grupo Ilú Obá de Min, no Museu Afro, em 2016.
ARRAES, Jarid. Heroínas negras brasileiras: em 15 cordéis. São Paulo: Seguinte, 2020.
[1] ARRAES, 2020, p.31-32
[2] ARRAES, 2020, p.88.
[3] ARRAES, 2020, p.51
[4] ARRAES, 2020, p.152
[5] ARRAES, 2020, p.102.