Há exatos seis meses, quinzenalmente, sento-me diante do computador para escrever essa coluna. Antes de digitar a primeira palavra, peço licença às minhas ancestrais, a todas as mulheres negras que vieram antes de mim e lutaram para que eu tivesse acesso a palavra. Saúdo as escrevivências minhas mais velhas e também as das minhas mais novas. Depois, coloco no papel o texto que criei em meu coração, nas “minhas entranhas”, como apontou Gloria Anzaldúa[1] em sua “carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo”, traduzindo em texto, as minhas vivências, leituras e estudos.

Eu nunca pensei em escrever, nem em publicar. Apesar de ser uma estudiosa da área de Literatura, acreditava que o espaço da palavra não era meu. Até que recebi a ligação dos meninos do Londrinando, amigos de longa data, que me fizeram a proposta de escrever sobre Literatura, para o site que eles iam relançar. Como estava totalmente comprometida com a fase final da escrita da minha tese, perguntei sobre os temas da coluna, porque se fosse para escrever a partir de uma direção específica, provavelmente não conseguiria, devido à falta de tempo para pesquisa. Mas, eles responderam: “Amandinha, escreva sobre o que você quiser! A coluna é sua!”. Diante desse cheque em branco, não tive dúvidas, escreveria sobre minha experiência enquanto leitora da Literatura produzida por mulheres negras.

Confesso que no início tive muito medo. O racismo tira de nós as certezas de nossas capacidades e, mesmo a poucos passos de me tornar uma doutora em estudos literários, duvidava se estava capacitada para desenvolver a tarefa proposta. Além disso, escrever talvez seja um dos atos mais ousados que já fiz, pois, cada texto publicado, exigiu-me interiorização. Obrigou-me a enfrentar “meus demônios” e, bem sabemos que olhar para nós mesmos, nem sempre é fácil. Ao mesmo tempo, o exercício da escrita me salvou. Me conduziu no meu processo de reconexão comigo mesma, com minha ancestralidade, depois de um longo período de deserto. Me permitiu voz, autoria. Deixei de ser objeto para ser sujeito. Passei a contar minha própria história, recriar novas narrativas. Me deu solo firme, para que eu pudesse pisar, caminhar e seguir subvertendo limites impostos. Como bem colocou Anzaldúa: “Escrever é perigoso porque temos medo do que a escrita revela: os medos, as raivas, a força de uma mulher sob uma opressão tripla ou quádrupla. Porém neste ato reside nossa sobrevivência, porque uma mulher que escreve tem poder. E uma mulher com poder é temida.”[2]

Conceição Evaristo, em seu conhecido conto “A gente combinamos de não morrer”[3], revela que “Escrever é uma maneira de sangrar...”. Na época, quando li essa frase não compreendi muito bem. Mas, hoje eu entendo. Escrever é sangrar. É isso. O texto, criado no meu interior, ao ser expelido é sangue que jorra. Sangra e sangra muito. Dói muito. É ferida aberta e necessária! Um texto escrito é antes criado nas minhas entranhas!

Mesmo assim, continuo escrevendo, porque o sangue também é novo ciclo, é amadurecimento, é renovação, é fertilidade, é criação, é vida!

Escrever também é recriar! Escrever também foi uma forma que encontrei de manter a mim e a minhas ancestrais vivas!

Ao longo desses 12 textos, questionei o cânone masculino-branco, apresentando para vocês, o meu próprio cânone, formado por mulheres negras. Dividi com vocês a minha história, revelando o lugar essencial que a literatura possui na minha trajetória. Mergulhei nas escrevivências de mulheres negras e encontrei minha voz. No meu ecoar, encontrei vocês. Construí minha rede de afeto, de troca de vivências, de troca de escrevivências. Esse insubordinado caminho traçado pela poesia me permitiu sobreviver, em um país onde as vidas negras pouco importam. Me possibilitou ser ouvida, em um país que me silencia. Me deu existência, em um país que me invisibiliza.

Anzaldúa, ao ser questionada sobre a razão de querer ocupar o espaço da escrita, mesmo sabendo que tal lugar não foi reservado as mulheres negras como ela, responde:

“Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva da complacência que me amedronta. Porque não tenho escolha. Porque devo manter vivo o espírito de minha revolta e a mim mesma também. Porque o mundo que crio na escrita compensa o que o mundo real não me dá. No escrever coloco ordem no mundo, coloco nele uma alça para poder segurá-lo. Escrevo porque a vida não aplaca meus apetites e minha fome.

Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você. Para me tornar mais íntima comigo mesma e consigo. Para me descobrir, preservar-me, construir-me, alcançar autonomia. Para desfazer os mitos de que sou uma profetisa louca ou uma pobre alma sofredora. Para me convencer de que tenho valor e que o que tenho para dizer não é um monte de merda. Para mostrar que eu posso e que eu escreverei, sem me importar com as advertências contrárias. Escreverei sobre o não dito, sem me importar com o suspiro de ultraje do censor e da audiência. Finalmente, escrevo porque tenho medo de escrever, mas tenho um medo maior de não escrever.”[4]

Eu, novamente digo: escrever é uma maneira de me manter viva!

Hoje, me despeço dessa coluna, com a alma alegre e grata por ter podido ocupar esse espaço da palavra, com o respeito que ele merece, da forma que aprendi com as minhas mais velhas: sugerindo novos caminhos de leituras literárias, propondo questionamentos, possibilitando encontros entre várias gerações de mulheres negras escritoras, proporcionado momentos de trocas, descobertas, encantamentos, catarses e reflexões... E, principalmente, por ter tornado cada texto, solo fecundo, de onde nascem novas histórias e trajetórias!

Por isso, dedico esse último texto a minha irmã, Sandra, que há nove meses é mãe de sua primogênita Helena e, na madrugada do dia 18/12/20, apresentou-a ao mundo. Mais uma flor menina-negra ocupa seu espaço, rompendo bolsas, barreiras e limites. Mais uma mãe-negra é solo a germinar beleza, fortaleza, realeza, delicadeza, criatividade, possibilidade, continuidade!

Como de costume, finalizo esse texto com um poema, que também ofereço a Sandra. Dessa vez, escolhi a poética de Priscila Obaci, não só por ter transformado sua experiência de pós-parto em poesia, que será acolhimento para minha irmã, mas por ter tornado a poesia um lugar materno e fecundo, assim como nossas ancestrais, que se utilizavam da palavra para continuarem gerando nosso povo:

Sol meu

Maternidade é um inverno rigoroso

Congelante

Aconchegante no abraço

Na vida presença fogo

É ter um Sol particular

Ser fotossíntese a cada troca de olhar

É ter de presente sorrisos chamas

É ver todo gelo derreter

Respirar além dos cinzas

Mergulhar em sombras frias

Ver cores e sabores em cada gota de tempo

Ser flores em galho seco

Transformar luz em alimento

É sempre amanhecer.

(OBACI, 2020, p.33)[5]

 

Com gratidão!

 

[1] “Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo”. In: Revista Estudos feministas. V.8. n.1 (2000). p.229-236. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/9880/9106> Acesso em: 14 dez 20

[2] Idem.

[3] EVARISTO, Conceição. Olhos d´agua. Rio de Janeiro: Pallas: Fundação Biblioteca Nacional, 2015. p.99-109.

[4] Anzaldúa, 2000, p. 233.

[5] OBACI, Priscila. Poesias pós-parto. São Paulo: Oralituras, 2020.

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