Cinema

A Chihiro que saiu do túnel não é a mesma que entrou

por Renata Cabrera 22.12.20

No ano que vimos a corrida pelo estoque de papel higiênico ser televisionada, é no mínimo esperado que neste momento façamos um exercício de autorreflexão. Ao contrário do que pede a cultura extravagante das festas comuns a este período, o clima está muito mais favorável para voltar-se a família, as pequenas coisas de grande valor e de lembrar com gratidão pelos aprendizados alcançados em 2020; isto é, se assim formos capazes de cumprir o dever de casa que nos foi dado, afinal de contas, que ano, amigos... que ano! Lembro de ter lido “A Peste”, de Camus, logo no início da pandemia no Brasil e confesso que neste episódio fiquei assustada, mas ao mesmo tempo um pouco descrente do que reservava os próximos capítulos desta epopeia. Ledo engano. Aqui estamos, numa guerra praticamente invisível, mas repleta de significados e símbolos que ficarão registrados nos anais da condição de adaptação humana e existencial.

E se o clima pede um ritual de passagem de ano mais ponderado que o convencional, convém também a mim encerrar esta coluna com um dos filmes mais sensíveis e carregado de simbologias que a história da animação mundial já presenciou: A Viagem de Chihiro é uma obra de possibilidades infinitas e que se adequam facilmente a subjetividade do espectador. No que é possível também enquadrá-lo, o gênero coming of age (citado aqui anteriormente), um dos longas mais importantes realizado pelo japonês Studio Ghibli e dirigido pelo mestre Hayao Miyazaki, o filme vai além da história de amadurecimento em que uma pré-adolescente se vê num fluxo de mudanças radicais; Chihiro é a metáfora das lembranças que temos de tempos difíceis, mas que nos levam a processos de transformações irreversíveis em períodos de transição.

Assim como a protagonista enfrenta a experiência de deslocamento espacial e psicológico, me vi este ano num tempo de confrontos colossais com a forma de habitar meu mundo físico e mental. Mesmo agora, que retomei alguns trabalhos, por um tempo tive de mudar de profissão, mudei de casa, deixei o cabelo crescer (os brancos, inclusive!), não voltei “pra casa da minha mãe” diante de uma crise de identidade braba que o isolamento proporcionou e como foi difícil encarar a solitude e a saudade... mas sobrevivi – ou melhor dizendo, ainda estamos vivos. E lembrando de um dos trechos do filme, “Nada do que acontece é esquecido, mesmo que não se lembre”, ao encerrar o ano a sensação é de mais sabor que dissabor. Assim como em “A Viagem...”, em que Miyasaki, como nenhum outro, captura a nostalgia, as perdas e o amadurecimento, é também sobre isto que este texto pretende dizer alguma coisa.

A questão da linguagem da obra de Miyasaki é profundamente marcada por seres fantasiosos, sombras, criaturas de feição monstruosas e outras tão dóceis, e também de alegorias aos caminhos e jornadas que devemos trilhar; é comum, por exemplo, que em algumas de suas produções apareça automóveis de deslocamento, como o ônibus de “Meu Amigo Totoro” ou mais especificamente o trem que Chihiro toma para encontrar-se com o outro lado da história. É nessa viagem que nos deparamos com os sentimentos iluminados escondidos dentro de nossa própria escuridão – nossos medos, inseguranças, fracassos e por vezes a falta de empatia para com nossos semelhantes. 19 anos depois de sua estreia, “A Viagem de Chihiro” continua tocando a epiderme do cinema adulto através de um universo infantil, imaginativo e onírico.

Sucesso de público e de crítica, o longa foi a primeira animação japonesa a ganhar um Oscar e a maior bilheteria da história do país até 2016, quando perdeu o título para a animação “Your Name”, de Makoto Shinkai, ambos disponíveis na Netflix. A viagem misticamente social de Chiriro é um prato cheio para quem quer uma boa dose de introspecção e que acredita encontrar neste fim de ano uma chance de rever, ainda que tão dolorosamente, as lembranças positivas de um ano intenso! Aproveito a dobradinha para recomendar um curta-metragem intitulado “Se Algo Acontecer... Te Amo”, de Will McCormack; ele foi co-roteirista do filme de animação Toy Story 4 e segue essa linha de recomeços da qual me referi por aqui.

Desejo a vocês, caros leitores, uma próxima jornada rumo aos encontros com fantasmas que estabeleçam conosco a possibilidade de descobertas e descaminhos. E que estas errâncias afetem nossa forma de ver e perceber o mundo e a particularidade dos afetos. Assim como Chihiro, que possamos negociar muito pouco com o que de fato importa, ainda que a oferta contra isso reluza em ouro, e lutar veementemente contra os espíritos sujos. Desejo-lhes bolinhos e sabonetes de ervas para clarear as dúvidas e as culpas, e a água para renovar nossos votos de esperança consigo e com o mundo. Animem-se, pois "a Chihiro que saiu do túnel de 2020, não é a mesma que entrou". Um abraço e aproveitem o recesso para ver filmes rs.

 

(Sobe créditos finais).

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