Esperança é coisa engraçada! Quando a gente acha que ela já está no fim, a força renasce, surge em meio as cinzas, feito fênix, nos mostrando que há muito por vir!

Em tempos tão difíceis como os que temos vivido, em que precisamos gritar que “vidas negras importam”, fui tomada por uma imagem extremamente significativa e revigorante: as obras de quatro mulheres negras, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Sueli Carneiro e Djamila Ribeiro, liderando a lista dos livros mais vendidos do último mês.

Em um país onde nem a leitura, nem o combate ao racismo e ao machismo são prioridades, saber que, em meio a uma pandemia, escrevivências femininas negras são as mais lidas e compartilhadas, reavivam qualquer esperança que se encontrava adormecida! É possível crer em um futuro diferente!

Poderia partilhar com vocês, sobre a potência da escritura de qualquer uma das quatro mulheres citadas e, de como a leitura de suas obras marcou a minha trajetória. Todavia, escolho a matriarca, a primeira voz que ecoou de dentro de um barraco/quilombo de uma favela, ás margens do rio Tietê, em São Paulo, nos anos 1960, Carolina Maria de Jesus.

Ser a escritora mais vendida do país, não é feito novo para Carolina. Há 60 anos, publicara o primeiro best-seller brasileiro, Quarto de despejo: diário de uma favelada. Apesar disso, a poetisa ainda é aquela que, na maioria das vezes, quando falo o nome, devo já preparar um aposto, aquela frase utilizada para explicar o substantivo.  Ou seja, quando digo que estudo Carolina Maria de Jesus, automaticamente me deparo com um silêncio, ou um “não conheço”, que me obriga a apresentar uma minibiografia da autora.

Entretanto, não me canso desse movimento de “apresentá-la”. Pelo contrário, faço isso com o maior prazer e, ao mesmo tempo, com todo cuidado e respeito para não reduzir a grandiosidade dessa mulher, reproduzindo estereótipos, nesse pequeno espaço de um aposto. Meu desejo é que cada vez que eu falar de Carolina a alguém, seja mais uma pessoa a ser tomada por essa revolução!

 É, esperança é mesmo coisa engraçada...

Há alguns anos, quando iniciei o mestrado, explicava a uma amiga, que é amante de Literatura, sobre o meu projeto. Ao falar sobre meu objeto de pesquisa, a obra Diário de Bitita, de Carolina, vi aquela cara de incógnita no rosto da Rê. Expus que, assim como Clarice Lispector, escritora por quem ela nutria grande admiração, Carolina também concebia uma escrita inovadora e criava fluxos psicológicos em suas narrativas, que sua obra também questionou o lugar da mulher no cânone literário, não só brasileiro, mas mundial, subvertendo estruturas e limites impostos às mulheres negras.

Na mesma época, tive o mesmo diálogo com várias outras pessoas, quando era questionada sobre a autoria das frases que, frequentemente, postava no Facebook, como:

“O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças.”

“Eu classifico São Paulo assim: O palácio é a sala de visitas. A prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos”

“A noite está tépida. O céu está salpicado de estrelas. Eu que sou exótica, gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido.”

“Parece que vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato a felicidade.”

“Não tenho força física, mas as minhas palavras ferem mais do que a espada. E as feridas são incicatrizáveis.”

“Tem pessoas que quando estão nervosas xingam ou pensam na morte como solução. Eu escrevia o meu diário.”

“Não estou com sono porque tenho sono durante o dia. E a noite tenho poesia.”

“É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela.”

“Minha vida é um segundo. Transitivo é meu viver...”

Mas, recentemente, em uma virada cultural virtual, realizada pela equipe de professores e alunos da Escola Estadual Dona Berenice de Magalhães Pinto, do interior de Minas Gerais, pude ver Maria Vitória, no arvorecer do seu ser mulher negra, recitar :

“Quantas coisas eu quiz fazer/Fui tolhida pelo preconceito/Se eu extinguir quero renascer/Num país que predomina o preto”.

Pude ouvir Loys Lene, na força questionadora dos seus 17 anos, declamar:

“Diz o brasileiro/Que acabou a escravidão/Mas o colono sua o ano inteiro/E nunca tem um tostão.”.

Pude contemplar mais de 50 jovens conectados e emocionados com a poética de Carolina.

A poetisa que morreu em decorrência de uma crise asmática, provavelmente, disse as mesmas palavras de George Floyd, o homem negro assassinado pela polícia estadunidense, antes de morrer: “Eu não consigo respirar!”. Entretanto, hoje pode soltar o grito preso, sufocado pelas palavras que não pôde dizer, por meio da garganta dessas meninas!

É, esperança é uma coisa engraçada...

Maria Vitória, Loys Lene e Rê, que só liam Clarice, hoje lêem Carolina!

E por falar em esperança, já dizia dona Aurea, minha avó, que “Esperança não enche pança!”. É, não enche mesmo! Mas, é justamente por isso, que é bom mantê-la, porque nos movimenta. O silenciamento ainda existe, mas não permanecerá por muito tempo! Carolina vive e resiste! Sigamos!

Se você está chegando agora ao universo carolineano, seja bem-vindo! Chegue desarmado, mas cuidado, Carolina é um caminho sem volta! Minha mãe que o diga! Depois de 10 anos me ouvindo falar de Carolina, ontem, vi a mulher que achava que não gostava de ler, identificando-se com a escrevivência da autora e gargalhando com as peripécias de Bitita!

Quem leu Quarto de despejo, sabe que hoje, 15 de julho, é aniversário de Vera Eunice, filha de Carolina. Para ela dedico este texto!

Hoje também é aniversário da minha amiga Rê, que é fã de Clarice e agora também de Carolina. Rê, este texto é para você também! Feliz aniversário!

Deixo vocês com um de seus poemas, “Quarto de despejo”, que possui o mesmo título de seu best-seller e expõe o sentimento da grande escritora brasileira, que morreu sufocada por uma sociedade que não estava preparada para ouvi-la, mas... Hoje utilizo-me do direito de ter Esperança!

Quarto de despejo

Quando infiltrei na literatura
Sonhava só com a ventura
Minhalma estava chêia de hiato
Eu não previa o pranto.
Ao publicar o Quarto de Despejo
Concretisava assim o meu desejo.
Que vida. Que alegria.
E agora… Casa de alvenaria.
Outro livro que vae circular
As tristêsas vão duplicar.
Os que pedem para eu auxiliar
A concretizar os teus desejos
Penso: eu devia publicar…
– o ‘Quarto de Despejo’.

No início vêio adimiração
O meu nome circulou a Nação.
Surgiu uma escritora favelada.
Chama: Carolina Maria de Jesus.
E as obras que ela produz
Deixou a humanidade abismada
No início eu fiquei confusa.
Parece que estava oclusa
Num estôjo de marfim.
Eu era solicitada
Era bajulada.
Como um querubim.

Depôis começaram a me invejar.
Dizia: você, deve dar
Os teus bens, para um asilo
Os que assim me falava
Não pensava.
Nos meus filhos.

As damas da alta sociedade.
Dizia: pratica a caridade.
Doando aos pobres agasalhos.
Mas o dinheiro da alta sociedade
Não é destinado a caridade
É para os prados, e os baralhos

E assim, eu fui desiludindo
O meu ideal regridindo
Igual um côrpo envelhecendo.
Fui enrugando, enrugando…
Pétalas de rosa, murchando, murchando
E… estou morrendo!

Na campa silente e fria
Hei de repousar um dia…
Não levo nenhuma ilusão
Porque a escritora favelada
Foi rosa despetalada.
Quantos espinhos em meu coração.

Dizem que sou ambiciosa
Que não sou caridosa.
Incluíram-me entre os usurários
Porque não critica os industriaes
Que tratam como animaes.
– Os operários…

Carolina Maria de Jesus

Foto de ThePixelman

Publicidade

Como anunciar?

Mostre sua marca ou seu negócio para Londrina e região! Saiba mais