Literatura

Você pode substituir a taxação de livros por projetos de democratização da arte, por exemplo...

por Amanda Crispim Ferreira Valerio 01.09.20

Imagino que depois de dois meses juntos nessa coluna, não seja novidade para vocês que eu gosto de ler. Desde pequena, as ideias acerca de “tesouro” e “dia feliz” estavam sempre associadas a possuir livros, ter disponibilidade para leituras e poder frequentar bibliotecas. Também já deu para perceber que não sou rica, né? Ou não?

Quis fazer essa introdução porque, recentemente, fui tomada por uma fala de um membro do governo atual, que me incomodou profundamente: “Livro é produto de elite!”. Tal frase foi usada para justificar a proposta de taxar livros e, consequentemente, encarecer ainda mais o produto.

Veja bem, antes que você pense que esse texto é um simples manifesto contra a proposta de reforma tributária, já adianto que o foco não é esse, até porque, sei muito bem que essa discussão em torno da taxação de livros é muito mais complexa e não estou aqui fazer nuvem de fumaça, dando palco para declarações de membros desse governo ou para ter minha fala instrumentalizada por grandes editoras que sempre fecharam suas portas para livros de autoria negra ou periférica. Minha motivação está na desconstrução de um olhar que se tem sobre a população pobre desse país e a sua relação com o livro.

Sim, eu concordo que o livro é um produto caro. Sim, eu também concordo que a maioria da população brasileira não tem condições financeiras para comprá-lo. Mas, não. Eu não concordo que livro é coisa de rico e, tenho diversos exemplos para ilustrar minha opinião: meus alunos que moram nas favelas e amam ler; O sucesso de festivais literários nas periferias; O aumento do número de publicações de livros das chamadas Literatura negra e Literatura periférica; A diferença entre a estante de livros do ministro da Economia, que se apresenta vazia, e a das irmãs, Eduarda e Helena, as “pretinhas leitoras”, que desenvolvem um projeto de incentivo à leitura de literatura negra com as demais crianças do Morro da Providência, no Rio de Janeiro, onde foram criadas; As significativas vendas de livros pela Avon, que consegue oferecer títulos famosos a preços acessíveis em seu catálogo...

Não poderia deixar de mencionar a trajetória e os escritos de uma das maiores escritoras brasileiras, Carolina Maria de Jesus, que, mesmo sendo pobre e preta e, mesmo sabendo que a servidão era o único lugar reservado às mulheres pobres e pretas nesse país, desde pequena ousou subverter esse lugar. Construiu uma forte relação com os livros, a ponto de ser presa, acusada de bruxaria, porque estava lendo um dicionário, que foi confundido com um livro de São Cipriano; de obter na leitura das obras guardadas nas bibliotecas dos patrões sua melhor opção de deleite e estudo nos dias de folga e de encontrar na literatura retirada do lixo, ganhada ou comprada (sim, por diversas vezes, Carolina deixou de pagar uma condução ou comprar um outro item de necessidade básica para investir em livros, jornais, cinema, pois para ela, a arte era uma necessidade básica), sua maneira de resistir às violências físicas e simbólicas que uma mulher negra, mãe-solo e pobre estava sujeita no Brasil. Não é à toa que uma das suas frases mais conhecidas é: “O livro... me fascina. Eu fui criada no mundo. Sem orientação materna. Mas os livros guiou os meus pensamentos. Evitando os abismos que encontramos na vida. Bendita as horas que passei lendo. Cheguei a conclusão que é o pobre quem deve ler. Porque o livro, é a bussola que ha de orientar o homem no porvir (...)”[1].

Tudo isso são provas de como essa afirmação sobre o desinteresse dos pobres pela leitura é uma falácia. Não há falta de interesse e sim, falta de oportunidades.

Eu também sou um exemplo. Como disse no início do texto, nunca fui rica. Cresci em bairros periféricos, sujeita a diversas violências e, por mais que seja clichê, não me canso de dizer que a Literatura me salvou. Na Bíblia, que foi, durante muitos anos, o único livro que tínhamos em casa, aprendi, antes mesmo de conseguir compreender o significado de cada letra no papel, a olhar além do caminho que nos é imposto, a respeitar as diferenças e a crer que tudo ficaria bem. A história que eu mais gostava era a do cego de nascença. Eu ficava imaginando aquele cego e como ele conseguia enxergar mais do que aqueles que não tinham deficiência alguma, ou pelo menos, achavam que não tinham, achavam que eram perfeitos. Eu pedia para minha mãe ler todas às noites, a mesma passagem. Por diversas vezes, nem queria tanto ouvir a história, mas queria ouvir minha mãe. A leitura era nosso elo.

Depois, alfabetizada, meu pai sempre trazia livros que ele emprestava da Biblioteca pública municipal. Ele escolhia e eu lia. O método era justificado porque a biblioteca ficava na região central da cidade, próximo ao local onde meu pai trabalhava, não exigia nenhum gasto adicional. Já, se ele fosse me levar, teríamos que arcar com os custos da passagem de ônibus e isso já fugia do nosso orçamento. A leitura foi a forma que eles encontravam de me manter segura em casa, sozinha, enquanto eles iam trabalhar. Eu observava as crianças vizinhas brincando na rua e me contentava com os enredos dos livros.

Até que passei a estudar no centro da cidade e, finalmente, tive acesso ao tão sonhado poder de escolha. O local que abrigava os livros era um prédio tão grande e pomposo, que me imaginava entrando em um castelo, igualzinho aos que eu via nos livros de contos de fadas da minha infância. Cheio de pessoas brancas. Subir aquelas escadas parecia tão transgressor. Me sentia única, tanto no sentido de importante, quanto no aspecto da solidão. Era única.

Na escola, continuei única, mas só no sentido de só mesmo. Era bolsista em uma instituição privada, única negra retinta e descobrir a biblioteca foi uma espécie de alívio. Não estava mais só. Estava entre amigos: os livros. Lia desesperadamente. Até que um dia, falei baixinho: “Eu já li esse, é lindo!”. A menina com o livro na mão, procurou a voz que tecia opiniões sobre o título: “É mesmo? Fala sobre o quê?”. Eu aproveitei a brecha e fui falando tudo sobre “A hora do amor”, de Álvaro Cardoso Gomes. Ficamos amigas!

A literatura me tirou da solidão!

Me recordo que tinham os livros proibidos. Ficavam guardados no balcão da bibliotecária: O cortiço, Noite na Taverna... Não tínhamos acesso. Aí compreendi que existiam mais livros no mundo do que aqueles que me eram oferecidos e que, provavelmente, seriam os mais interessantes. Eu lembrava da história da Bíblia sobre o jovem cego e tudo isso me fez querer enxergar. 

Na faculdade, como vocês sabem, a Literatura negra me possibilitou reconhecimento. Aquelas páginas todas brancas foram substituídas por histórias lindas e pretas. Foi como se tivesse chegado a minha vez de lavar os olhos no tanque de Siloé e, agora, podia ver. Abria o armário no qual as obras proibidas estavam guardadas e descobri o poder de ler e ser completamente tomada por um texto, não que os que tinha lido até então não tivessem causado nenhum efeito em mim, mas falo de reflexão, incômodo e pertencimento.

Vendo-me nos livros, entendi que poderia ir além! A literatura me movimentou!

Livros negros raramente eram encontrados nas bibliotecas. Era preciso comprá-los. Na maioria das vezes eram editados pelos próprios autores ou por editoras independentes, de pequeno porte, o que impedia a grande circulação das obras. De repente, me vi incluindo livros na planilha de contas do mês. Juntando dinheiro. Tirando do supérfluo porque entendia-os como itens essenciais, de primeiríssima necessidade.

É por isso, que essa estratégia de infundir na mente das pessoas de que o livro não é para elas me causa tanta indignação, pois, significa afastar, ainda mais, a população da leitura. Significa roubar das pessoas algo que é delas por direito: a humanização causada por meio da literatura.[2] Significa manter armários trancados nas bibliotecas. Significa impedir as pessoas de curarem suas cegueiras.

Ouvi ainda que o governo taxaria as obras, mas doaria livros para a população carente. Na hora, recordei da bibliotecária que detinha a chave dos livros inacessíveis e desejados! Lembrei de quando o meu pai escolhia os livros para mim. Lembrei do povo que não era cego, mas não enxergava. Será que não passou pela cabeça do ministro que eu não quero o livro escolhido e doado pelo governo, mas sim, que eu exijo exercer o meu direito de escolha? Tal proposta, nada mais é do que aquela velha tentativa de censura, silenciamentos e demarcação de lugares... é um caso de lista de livros proibidos aqui, outro caso dos livros recolhidos em bienal ali, um caso de escritor da periferia que não consegue publicar devido à falta de “linha editorial” acolá, é uma fala preconceituosa sobre o fato de empregadas domésticas quererem ir para a Disney ali... e quando nos dermos conta ...

Ora, já que estão tão preocupados com a formação artística, cultural e intelectual dos pobres, bora liberar editais, realizar projetos de democratização da leitura, fortalecer pequenas editoras, para que nós, o povo, possamos escolher, acessar o que quisermos e não “engolir” o que for ditado por vocês.

Limitar, controlar o acesso aos livros é cultivar a disseminação de uma história única e a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie[3] já nos alertou sobre os perigos dessa prática.

Minhas ancestrais há séculos vêm transgredindo as barreiras para que tenhamos acesso a uma literatura plural, em que todos se sintam representados.  Antes, no período da escravização, por meio da contação de histórias, depois, por meio da escrita e, agora, por meio da editoração. Hoje, o boom de editoras independentes tem sido motivado pelo desejo de mulheres negras de exercerem o direito de contarem a sua própria história e, também, do anseio de outras por se sentirem representadas nos livros.

Diante disso, é preciso lutar pelo direito a escrita, sim! É preciso lutar pelo direito ao acesso aos livros, sim! É preciso lutar pelo direto a escolha, sim! É preciso lutar pelo direito a fazer viagens, sim! É preciso lutar para que possamos ter nossas próprias bibliotecas e não precisarmos mais pegar livros no lixo ou nas bibliotecas alheias, sim!

Tudo isso é direito e eu não abro mão!

[1] Carolina Maria de Jesus, em "Meu estranho diário". São Paulo: Xamã, 1996, p. 167

[2] Antonio Candido em “O direito à literatura”. In: Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2011.

[3] Chimamanda Ngozi Adichie em O perigo da história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

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