Hoje eu quero falar sobre trabalho escravo na indústria da moda.

Já começo este texto falando assim, na lata, sem rodeios, porque é um assunto muito sério. É um assunto que precisa ser falado com urgência.

Em meu primeiro texto aqui da coluna, eu falo rapidamente sobre a minha não-identificação com o curso de moda e a minha experiência frustrada no mercado de trabalho após a minha formação. Me doía conversar com amigos da faculdade, extremamente qualificados, e ouvir relatos de que muitos deles estavam desgastados emocionalmente/fisicamente/psicologicamente...porque não conseguiam encontrar boas oportunidades de trabalho, ou quando encontravam, não eram remunerados de forma justa, pra não dizer outras palavras.

Quando me questionam do porquê eu não gostei de trabalhar na área da moda, a minha resposta pode ser resumida em uma palavra: desvalorização. As indústrias buscam cada vez mais por profissionais altamente qualificados mas não querem pagar o preço dessa qualificação. Não querem valorizar os anos de muito estudo e dedicação, o investimento financeiro em materiais, cursos e especializações. Querem profissionais excelentes, produtos com altíssima qualidade, mas quando se trata de valorizar a vida de quem está por trás desta cadeia produtiva, a excelência é deixada de lado.  

Eu sei que isso é um problemão, mas ainda tem como piorar o cenário: a indústria da moda é o segundo setor de exportação que mais explora pessoas, ficando atrás somente das indústrias do ramo de tecnologia. É o que chamam de escravidão moderna, onde vítimas trabalham em condições precárias e recebem valores irrisórios pelo que produzem.

Isso ainda não te incomoda suficientemente? Então vamos de estatísticas:

De acordo com a pesquisa The Global Slavery Index 2018 da fundação Walk Free, divulgada pelo site Metrópoles, cerca de 40,3 milhões de pessoas estão nessa situação, das quais 71% são mulheres. O índice também mostra que as empresas envolvidas movimentam cerca de US$ 354 bilhões em exportação para os países do G20 – grupo constituído por ministros de finanças e chefes dos bancos centrais das 19 maiores economias do mundo e da União Europeia.

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Mas, e no Brasil?

De acordo com informações da Associação Brasileira da Indústria Têxtil (Abit), quase 85% do vestuário consumido no país é produzido por fábricas instaladas aqui mesmo. O Brasil é o quarto maior produtor de roupas do mundo, gerando 1,6 milhão de empregos — 75% da mão de obra é composta de mulheres. Apesar da importância para a economia nacional, o setor também sofre do mal da equação “produção rápida + preço baixo”.

Agora vamos dar ‘nomes aos bois’, que é o que interessa nesse texto, né? O site Repórter Brasil reuniu algumas das principais denúncias de escravidão dentro da indústria da moda no país. Vou citar apenas algumas aqui, porque, infelizmente, a lista é enorme:

  • Animale:

Em setembro de 2017, auditores fiscais encontraram imigrantes bolivianos trabalhando por mais de 12/dia no mesmo local onde dormiam, dividindo o espaço com baratas e instalações elétricas que ofereciam risco de incêndio. Sabe aquela 'brusinha' que na loja custa R$698,00? Estes escravos trabalhadores recebiam R$5,00, em média, por ter costurado ela.

  • Zara:

Em agosto de 2011, equipes de fiscalização trabalhistas flagraram, pela terceira vez, trabalhadores estrangeiros submetidos a condições análogas à escravidão ao produzir roupas para a empresa do grupo espanhol Inditex. Contratações ilegais, trabalho infantil, condições deploráveis, jornadas de trabalho de até 16h diárias, cobrança e desconto irregular de dívidas dos salários e proibição de deixar o local de trabalho. A investigação se iniciou em outra fiscalização, realizada em maio do mesmo ano. Na ocasião, 52 trabalhadores foram encontrados em condições degradantes.

  • M.Officer

Em novembro de 2013, uma ação resgatou um casal que produzia peças da M.Officer em condições análogas à escravidão em uma confecção na região central de São Paulo. Os trabalhadores eram bolivianos e viviam com seus dois filhos no local – uma casa que não possuía condições de higiene e não tinha local para alimentação, o que obrigava a família a comer sobre a cama, a mesma onde os quatro dormiam. Além disso, eles tinham que pagar todas as despesas da casa, valor descontado do salário. Em maio de 2014, outra ação libertou seis pessoas de oficina que também produzia para a marca. Todos eram imigrantes bolivianos e estavam submetidos a condições degradantes e jornadas exaustivas. O grupo trabalhava em uma sala apertada sem ventilação, um local com fios expostos ao lado de pilhas de tecido e muita sujeira acumulada.

  • Brooksfield Donna

Cinco bolivianos foram encontrados em condições semelhantes em uma oficina quarterizada da Brooksfield Donna, marca de luxo do grupo Via Veneto. Entre eles, estava uma adolescente de 14 anos. Eles trabalhavam mais de 12 horas por dia e viviam em condições degradantes. A empresa se recusou a prestar qualquer tipo de auxílio aos trabalhadores.

  • Renner

A Renner foi responsabilizada por autoridades trabalhistas pela exploração de 37 costureiros bolivianos em regime de escravidão contemporânea. O flagrante aconteceu em novembro de 2014 em uma oficina de costura terceirizada localizada na periferia de São Paulo. Os trabalhadores viviam sob condições degradantes em alojamentos, cumpriam jornadas exaustivas e parte deles estava submetida à servidão por dívida. Tais condições constam no artigo 149 do Código Penal Brasileiro como suficientes – mesmo que isoladas – para se configurar o crime de utilização de trabalho escravo. A fiscalização responsabilizou a Renner também por aliciamento e tráfico de pessoas.

  • Le Lis Blanc e Bô.Bô

A fiscalização realizada em junho de 2013 resultou na libertação de 28 pessoas que produziam peças para a grife Le Lis Blanc em três oficinas clandestinas diferentes, incluindo uma adolescente de 16 anos. Eles recebiam entre R$ 2,50 e R$ 7 por unidade costurada. As peças eram vendidas por até 100 vezes mais. Todos os resgatados eram bolivianos, e alguns estavam aprisionados por dívidas. Além de escravidão, a fiscalização identificou também tráfico de pessoas.

A lista continua e eu tenho certeza que muitas outras marcas não foram mencionadas nesta reportagem, assim como, também, muitos outros casos devem ter sido descobertos de lá pra cá. A questão não é quando os escândalos ocorreram, mas compreender que tudo isso aconteceu. E ainda acontece!

É muito fácil ser seduzido pelo aparente glamour do ‘universo fashion’. Eu sou um exemplo disso, quando paro e penso em quais eram as minhas motivações ao ingressar para a faculdade de moda – onde tudo parecia ser sinônimo de sofisticação, status, poder.

Mas nunca me veio à mente a palavra vida. E é bizarro como, ao longo destes anos todos, fomos nos distanciando do verdadeiro significado das nossas roupas, mesmo elas estando fisicamente unidas ao nosso corpo.

Mudar este cenário só é possível se for pensado de forma sistêmica. O movimento Fashion Revolution atua em favor dessas transformações, nos fazendo refletir sobre como as roupas são pensadas, feitas e consumidas, e aponta que é necessário:

  • Promover ativações sociais para incentivar mudanças culturais, como repensar o nosso comportamento de consumo e mudar nossos hábitos;
  • Exigir que as marcas mostrem suas cadeias de fornecedores de maneira humanizada, contando histórias e mostrando como o trabalhador está sendo valorizado (aproximando quem compra de quem faz);
  • Atuar no âmbito público: mesmo vivendo tempos difíceis em nossa política, o engajamento se torna fundamental para compreender de que forma podemos promover melhorias e criar novas políticas públicas para proteger e valorizar os trabalhadores.

Eu acredito, de verdade, que será um longo caminho a ser percorrido. Mas precisamos ter em mente, também, que somos fundamentais neste processo para encontrar uma solução. Podemos ser agentes transformadores em nossa sociedade.

Você vê vida em suas peças?

Então questione, pesquise, conheça quem está por trás dela.

É isso que eu vou fazer também.

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Capa: Fotografia da série “The Angels in Hell”, de GMB Akash, com o intuito de denunciar o trabalho infantil em Bangladesh.

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