Quando a gente escreve sobre obras artísticas, a primeira coisa que passa pela cabeça do crítico é, sem dúvida, a tentativa de se afastar da relação simplista com a produção em questão; isto é, escrever considerando poucos ou apenas um aspecto das interpretações possíveis. Gostar ou não do que foi assistido passa a ser reducionista diante do desafio de analisar a reação como espectador, levantar informações do diretor e como ele se posiciona diante das críticas, além, é claro, de buscar informações que possam traçar um paralelo com o que mais chama a atenção na linguagem do filme versus o que te toca pessoalmente – nessa hora, com certeza, é inegável não se deixar afetar de alguma maneira, ainda que positiva ou negativamente.

Partindo dessa reflexão, concluí que desde que comecei a coluna esta é a primeira vez que me vejo diante de um título cuja minha postura inicial foi de rejeitá-lo. Naquela aventura de procurar algo que atraia a curiosidade dentro das possibilidades que a Netflix oferece, e pensando sempre no que costuma ser mais acessível aos leitores, encontrei Mignonnes (Cuties, EUA). Escolhi pelo fato de ser um filme estrangeiro e também porque o longa havia sido premiado na Competição Global de Filmes Dramáticos do Festival de Cinema de Sundance na categoria Direção, em janeiro deste ano.

Para entender um pouco como o filme se ambienta, é importante ignorar as sinopses baratas que os serviços de streaming oferecem, já que o próprio Mignonnes foi alvo de crítica severa fazendo com que a Netflix se posicionasse publicamente pedindo desculpas pela falta de sensibilidade – inclusive tendo alterado o cartaz de divulgação do longa após a retratação, e também o título em português, a princípio Lindinhas. A polêmica gerada em torno do primeiro longa da diretora francesa Maïmouna Doucouré consiste em uma das questões centrais das críticas em todo o mundo: o filme tem os dois pés na realidade (principalmente no que diz respeito a fotografia e as escolhas de enquadramento) e não se preocupa em pesar a mão na forma como apresenta as questões mais subjetivas da protagonista.

Amy, uma adolescente de onze anos, interpretada pela jovem atriz Fathia Youssouf, se vê em um conflito cultural que transita entre as tradições de sua família de religião Islã, a cultura ocidental francesa e a hiper ficção das redes sociais – é aqui que mora um dos pontos mais incômodos na construção narrativa do filme. As escolhas da diretora em assumir imagens que sugerem uma hiperssexualização, ainda que projetadas de maneira irônica e até caricata em algumas sequencias, foi o que mobilizou a internet nos dias que sucederam o lançamento do filme, em setembro deste ano. No Brasil, por exemplo, a ministra Damares Alves pediu a retirada por julgar envolver crianças em conteúdo pornográfico fazendo apologia à pedofilia, e nos Estados Unidos, mais especificamente no Texas, a Netflix foi processada por promover conscientemente imagens que retratam "exibições obscenas”. O filme também foi censurado na Turquia e retirado após menos de uma semana de sua estreia.

Ainda que à primeira vista, após assistir ao longa, minha perspectiva tenha se manifestado de maneira conservadora, assumo aqui que passei exatos dois dias pensando compulsivamente nessa reação pessoal e lendo críticas e falas de pessoas influentes e autoridades na área. As questões que despontam o embate e a polêmica me pareciam um bocado exacerbados num certo sentido, mas algumas imagens, todavia, me impactaram e me trouxeram para um lugar de rejeição, em que assumi para mim que esta certamente não seria uma abordagem que eu, particularmente, faria. No entanto, o fato de este filme ter sido dirigido por uma mulher muda tudo, pois Mignonnes é a criação de uma cineasta de origens senegalesa e francesa ocidental.

Neste caso, portanto, como espectadora, passo a refletir que seria pouco provável reconhecer que os efeitos propostos por Maïmouna reforçariam os estereótipos negativos sobre as mulheres no cinema – marcas estas que são tradicionalmente encontrados em produções feitas a partir da perspectiva do olhar masculino. Assisti ao filme com a minha irmã, que estuda política, relações internacionais e direitos humanos, e cheguei a travar um embate sobre a maneira como a diretora expõe e escancara o tema sob a ótica de uma adolescente de onze anos – ao que parece, o argumento de que o longa foi realizado pela autora cujas origens são o que são, e representam o que representam, fortalece ainda mais sua postura e decisão na constituição do filme.

Em uma das entrevistas que li, Maïmouna Doucouré declarou ter feito Mignonnes baseada na sua própria história, e que ele afirma sua luta pela liberdade das mulheres na sociedade e também de nossas mentes: “Coloquei meu coração nesse filme”, disse. Me lembrei de quanto foi difícil minha fase de transição na adolescência, e o quanto até hoje questiono qual o meu lugar e minha autonomia para realmente escolher quem eu quero ser, para além dos exemplos que são impostos a nós pela sociedade. Como um espelho atual, Mignonnes projeta os estereótipos de maneira realista e traz um olhar autêntico sobre a vivência para meninas que crescem com a ameaça de exploração sexual. Na minha bolha, às vezes esqueço que as feridas que não são expostas talvez também nunca sejam curadas. E se para isso, for preciso friccionar as imagens, estaremos nós prontos e dispostos para as narrativas atuais? Um filme para ver, debater e pensar...

 

(Sobe créditos finais).

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