Para querida Geni Guimarães, por sua poética-farol, por seu regresso-poético!

Eu sempre gostei das aulas de História. Mas, nunca me identifiquei com o que aprendia nelas. A cada aula, em cada fato que a professora explicava, eu ficava tentando imaginar onde caberiam as minhas histórias em meio àquela sucessão de acontecimentos que formavam a “História do povo brasileiro”.

Eu era brasileira, mas não me via em nenhum momento daquelas narrativas.

Meus momentos de reconhecimento aconteciam nas tardes com as minhas mais velhas. Ficava horas na cozinha da casa da minha bisavó, ouvindo ela e a minha avó, contarem nossas histórias. Era tudo tão bonito, tão mágico, tão heroico, que eu não conseguia entender o porquê desses fatos não estarem nos livros. As pessoas justificavam dizendo que eram lendas, que eram fantasias, que as histórias que realmente valiam eram o que contavam na escola. Como boa aluna que sempre fui, acreditei, decorei, assimilei e reproduzi essa única versão dos fatos, que apagava as memórias dos meus.

Até que me encontrei com a escritura de mulheres negras e descobri toda memória que haviam me roubado. Enquanto lia a “Infância acesa” de Geni Guimarães, fui preenchendo todos os vazios causados pelo racismo estrutural, fui acordando da inércia que me foi imposta e, assim como o eu lírico do poema, quis “botar fogo no mundo”:

De manhã, café minguado,

fraquinho, morno, cansado,

saltava do velho bule.

Eu me apossava da brochura,

pés na estrada, terra dura

ia pra escola estudar.

 

Meninos fortes, bonitos,

barrigas fartas, redondas,

cortinas alvas em pompas,

mentiam-me um mundo novo

e me iludiam com igualdade sonhada.

 

Uma carteira envernizada

sutilmente me acurralava

nos desejos de senhores,

minha caixa com deis lápis,

se escondia envergonhada

ante outras caixas compridas:

trinta e seis lápis em cores.

 

E a tarde, de volta, em casa,

vendo meu jantar no canto

do fogão movido a brasas:

e adivinhando meu pai

rachando a lenha pro fogo

pés descalços,

Chapéu roto,

eu não sabia porque

vinha um doer tão profundo

que o meu peito se estreitava,

sentia um desejo louco

de pegar aquelas brasas

e botar fogo no mundo.

(GUIMARÃES, s/d, p. 37).

Eu, finalmente, tinha entendido a razão de tantas angústias, de tantos NÃOS, de tantos olhares atravessados. Eu compreendi que apesar de ter aprendido que uma princesa havia “libertado” os meus ancestrais, a escravização não havia acabado. Apesar de eu poder ir frequentar o espaço escolar, ela estava viva e exposta na minha caixa de lápis de dez cores e na minha pele preta tão única e solitária naquela classe tão branca. Seguia escravizada pelo racismo da sociedade atual, que me impedia de ter sonhos tranquilos, de acreditar-me capaz, de sentir-me parte:

Viu

 

Só porque você

Já não me amarra no toco,

Já não me fura os olhos,

E não me caça as fugas.

 

Só porque você,

Já não me aponta o cocho,

Já deixou meu nome

Figurar nos cartórios de registro...

 

Só porque você,

Não me bate de chicote,

Não me fura de faca,

Não me espeta o ventre...

 

Não quer dizer que não me deve nada:

 

Você me deve a chave da senzala,

Que está escondida nas gavetas dos balcões.

(GUIMARÃES, 1981, p. 15).

Identifiquei toda narrativa criada para tentar me enganar, “enfiando-me goela abaixo” uma história de democracia racial, dizendo-me frases feitas como: “no país não há preconceito”, “somos todos iguais, pois, todos temos sangue negro nas veias”, “a discriminação é por classe social e não pela cor da pele”, “o país oferece oportunidades iguais para todos e se o negro não as agarra a culpa é dele mesmo”; dentre outras falsas ideologias pregadas no Brasil. Percebi no eu lírico de Geni, que mantém viva a memória da escravização, a fim de cobrar uma revisão histórica da sociedade atual, que era preciso reivindicar “a chave da senzala, / que está escondida nas gavetas dos balcões”

Mergulhei nas palavras da poeta, como alguém que imerge em um rio profundo e revivi minha infância no seio de minhas ancestrais. Recordei-me de lugares e de momentos nos quais me sentia livre. Nas lembranças de minhas mais velhas, armei-me contra a hegemonia do discurso eurocêntrico. Encontrei o caminho para me libertar de “verdades invertidas”, fixadas, estabelecidas em minha mente:

Olha aqui, moço:

Aquela história

Que você inverteu,

Meus avós explicaram para meus pais,

Meus pais explicaram para mim,

Eu já expliquei para os meus filhos,

Meus filhos vão contar para os filhos

deles: Cuidado, pois.

(GUIMARÃES, 1981, p. 35)

Depois de um período submersa nos mares negros da memória e da poesia, despontei nas águas e desejei minha liberdade. Recordar é preciso!

Na foto: eu, minha mãe, minha avó e minha bisavó.

GUIMARÃES, Geni. Da flor o afeto, da pedra o protesto. Barra Bonita: Ed. da Autora, 1981.

________________. Balé das emoções. Piracicaba: Equilíbrio Editora, [s/d].

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